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Velha lição de Montaigne

Gislaine Marins

Lembro ainda hoje o maravilhamento que senti ao percorrer o Museu Uffizi de Florença pela primeira vez e, de repente, entrando numa das salas, dar de cara com O Nascimento de Vênus. Fiquei paralisada, de queixo caído, diante de tanta beleza. Somente por respeito aos demais visitantes consegui tomar a iniciativa de prosseguir e deixar Botticelli às minhas costas.

Lembrei dele, pois os adolescentes estão voltando para a escola na Itália e já iniciaram os justos protestos. As garotas não aceitam ser aconselhadas a não usar minissaias para não deixarem os professores de queixo caído. Como é possível ainda hoje ouvir um conselho tão extravagante?

Não é somente extravagante, é realmente inaceitável. A minissaia não é o problema, como não eram as calças jeans, como não é a vítima a culpada da violência que sofre. Na semana passada, aqui na Itália, uma moça foi morta em um acidente causado pelo próprio irmão porque a família não aceitava o seu relacionamento amoroso. Importa saber que tipo de relação tinha, importa saber que roupa usava ou qual maquiagem curtia? Não importa: não importa saber quem era Romeu e quem era Julieta, que se amavam. Se no lugar de matar uma jovem e destruir o seu amor proibido, estivéssemos falando do roubo da Vênus de Botticelli, ninguém arriscaria insinuar que o crime tinha sido causado para retirar à pudica visão dos espectadores de boa família a visão de uma mulher, que ilustra o amor divino e anuncia o amor físico, humano, com a sua chegada à terra firme.

Ainda na semana passada, um juiz reduziu uma condenação por estupro, justificando a sua sentença pela condição da vítima. Se estivéssemos falando de um idoso espancado, alguém diria que a culpa era dele por ouvir mal o agressor ou por ver mal os violentos se aproximando? Por que, em pleno século XXI, continuamos achando que os crimes contra as mulheres são provocados por elas e os crimes contra outras pessoas são culpa daqueles que causam o mal?

Por que podemos ensinar aos estudantes que Botticelli retrata a beleza na sua essência e transmitimos mensagens equivocadas e perversas sobre a sacralidade da beleza dos nossos corpos e da nossa vida? Por que ficamos presos eternamente à hipocrisia que Montaigne denunciava há mais de quatro séculos?

O ensaísta francês chocou a sociedade da sua época ao dissertar sobre a nudez dos indígenas do continente americano, incomparável com a sociedade europeia, coberta não apenas de panos, mas de subterfúgios e falsidade.

Não usem minissaia para não deixar ninguém de queixo caído: esta é a mensagem que ouvimos ainda hoje, espantando o que aprendemos com Montaigne, o que retrata Botticelli e o que pensam simples pessoas de bom senso deste triste século. Nenhuma palavra dirigida à falta de educação, à ausência de compostura, à agressividade incompreensível de quem, não bastando a violência cometida, é capaz de se esconder atrás da vítima: nenhuma palavra sobre a covardia.

Pelo contrário, abundam gestos coniventes para com quem reserva a menores uma erotização que ignoram. É gritante o silêncio dos que atribuem o status de brincadeira àquilo que é uma educação ao desrespeito e à inversão dos papéis de vítima e carrasco. Os moralistas que patrulham o comprimento das saias, as fotos nas redes sociais, as exposições artísticas e julgam com destemor as vítimas, desprezando o que sofreram, são os que lançam um infame véu para cobrir agressões e a própria incapacidade de fazer diferenciações. Nossas contradições podem ser vistas a olho nu, se não usamos lentes grossas para esconder a nossa hipocrisia.

Porém, nem tudo está perdido. Se conseguirmos salvar Botticelli da fogueira e quem sabe da hipocrisia, como já aconteceu no passado, as próximas gerações terão a oportunidade de contemplar a beleza pura e encontrar coragem, além do próprio tempo e da própria realidade, para lutarem pelo amor e pela liberdade. Botticelli, além da maestria e da arte que exala, é também um aviso que nós, mulheres, podemos interpretar como um alerta perene: nunca deixar que ditem o que nossos corpos devem ou podem representar. Basta pouco para que as pessoas esqueçam os seus limites e se entreguem à prepotência, que vai da ofensa ao estupro, do abuso ao homicídio. Depois de mais de cinquenta anos da invenção desta peça do vestuário, estamos aqui a discutir os centímetros das saias. A vida não é tão pequena, o amor não se mede pela aparência, a liberdade não se avalia pelas portas que podemos atravessar.

Para completa informação: o Romeu deste relato era transexual. A vítima de estupro era cônjuge do seu agressor. Vênus, salve o amor. 

Sobre o autor

Gislaine Marins

Doutora em Letras, tradutora, professora e mãe. Autora de verbetes para o Pequeno Dicionário de Literatura do Rio Grande do Sul (Ed. Novo Século) e para o Dicionário de Figuras e Mitos Literários das Américas (Editora da Universidade/Tomo Editorial). É autora do blog Palavras Debulhadas, dedicado à divulgação da língua portuguesa.

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