Uma escolha difícil
Deve-se a Aristóteles a definição da ética como parte essencial da natureza humana. Guiados pela virtude e destinados à felicidade, as pessoas só alcançam as suas metas, se as suas ações forem éticas, se as suas escolhas seguirem esse norte. Não é possível relativizar sobre o que é virtuoso ou não, pois a noção aristotélica de virtude não pode ser equiparada à opinião pessoal. Há um vínculo entre ética e qualidades racionais, como a inteligência, a arte e a ciência, assim como entre a ética e as qualidades ligadas à nossa sensibilidade, como a coragem ou a mansidão. Em todas as nossas esferas de interação com a realidade, é possível fazer escolhas éticas, mas isso não é fácil. Comporta conformação a uma série de condições, de forma que o sentido de felicidade para Aristóteles não pode ser confundido com uma situação puramente individual, que prescinde do julgamento externo. A felicidade não é uma libertinagem sem freios, não é a desmedida de uma vida pautada por regras interiores que ignoram a sociedade, não é uma condição desregrada e indiferente ao que acontece ao redor.
Por isso, quando se usa a expressão “uma escolha difícil” para justificar posições pautadas por interesses de parte, fica-se com a sensação de que o meio foi usado para um fim sectário e não para o bem comum. Escolher a ética não é fácil, pois muitas escolhas que fazemos são erradas, pura e simplesmente. Colocar a ética na base das nossas ações pressupõe valer-se de diferentes capacidades, pondo-as a serviço de um bem maior. Pressupõe saber delimitar o que é opinião, palpite, interesse, mentira e saber reconhecer critérios, justiça, virtude. Não basta enfileirar palavras para que uma declaração se torne ética. A língua que exige rigor para que algo seja definido ético, é a mesma que admite a persuasão e o convencimento. A língua que possui instrumentos para desmascarar mentiras é a mesma que consente a construção de falácias.
Há muito tempo estamos assistindo a injustiças e a omissões graves cometidas por quem a língua tem o dever de conhecer e utilizar de maneira ética. Há muito tempo estamos sendo acostumados à celeridade da lei de acordo com o réu e com as ocasiões para que as sentenças produzam efeitos que atingem a vida de todos. Há muito tempo deixamos de avaliar a ética dos pronunciamentos em nome de interpretações de conveniência. Há muito tempo estamos abandonando o que é mais caro a nós mesmos: a nossa dignidade. Viver sem ética é abdicar daquilo que caracteriza a nossa essência. E a dignidade é a majestade intrínseca de cada pessoa, de acordo com a sua grandeza. Estamos abdicando de sermos grandes, dignos e éticos, para abraçarmos a ignorância, a mesquinhez, a vileza e a injustiça.
Cada vez que penso que já passou a hora de deixar transbordar as lágrimas e de entregar-me ao desespero, percebo que o mal, as maledicências, as mentiras, as manipulações, as instrumentalizações avançam mais um pouquinho, exigindo coragem para responder e resistência para suportar os ataques que espezinham a inteligência e os melhores sentimentos. Não é só a língua que é ferida, não é só o diálogo que se interrompe: o que temos visto por meio de declarações, documentos e sentenças vai muito além. As palavras, hoje com a velocidade de um clique, destroem biografias, relegam as passoas à sua própria impotência, segregam os que podem ter alguma oportunidade e garantem posições de poder aos que usurpam todas as oportunidades.
Precisamos lembrar o percurso que fizemos para chegar até o abismo em que vivemos. Precisamos lembrar o passado para sair dele. Precisamos de justiça para retomar a nossa democracia. Precisamos de ética, usada com inteligência e coragem, para que as nossas escolhas difíceis não sejam apenas falácias bem escritas para o deleite de quem manda e para a desgraça de quem acredita nelas.
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