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Tarde demais para ser infeliz

Gislaine Marins

Certos dias, bem que gostaria de me chamar Emma e de curtir à vontade histórias cavaleirescas com a certeza de que não cairia na armadilha de Madame Bovary. Seria um bom exercício de devaneio, mas, em vez disso, tenho de ler o que a realidade nos propõe: são leituras inacreditáveis.

Se o amante de Emma se chamasse Sergio, a trama não seria tão perfeita: seria premonitória. Todo mundo que já leu o romance de Flaubert sabe que a heroína que dá título à narrativa acredita no seu amante e quebra a cara, como muitas pessoas que acreditaram no herói da luta contra a corrupção.

No entanto, isso nem é o mais inacreditável nessa história. Assombroso mesmo é pensar que um roteiro tão batido emplaca sempre. Eça de Queirós contou em O Primo Basílio a história de uma heroína traída e um dos maiores romances de Machado de Assis, Dom Casmurro, é conhecido até por quem não leu: afinal, Capitu traiu ou não traiu? E Riobaldo, herói do romance magistral de Guimarães Rosa, o que é senão um personagem atormentado pela identidade insondável de Diadorim? É espantoso que não tenhamos familiaridade com os dois lados da medalha, que não tenhamos intimidade com as nossas ilusões sobre os outros.

Mais surpreendente ainda é pensar que milhares de pessoas preferem uma mentira mal contada em vez de aprender a ler nas entrelinhas dos bons livros, único espaço de comparação com a realidade ainda admitido nos currículos escolares. Desconhecemos a filosofia por culpa da ditadura militar, que excluiu essa matéria dos currículos. Restaram os modelos ficcionais, como faziam os gregos nos teatros da antiguidade para o povo ou como fazem os narradores em todos os tempos para os leitores. Ademais, a filosofia da vivência, como a que foi praticada por Epicuro, nunca gozou do prestígio alcançado por Platão. Pelo contrário, o platonismo, ao longo dos séculos, encontrou seus nichos e construiu muros intelectuais, segregando por diferentes razões quem não era iniciado nas artes do pensar filosófico.

É tarde demais para ser infeliz, repito-me com certa frequência. Quando tudo dá errado e todas as ilusões correspondem à desilusão igual e contrária, o jeito é salvar o salvável. Antes de tudo, a felicidade. E aqui volto a Epicuro, o incompreendido, pois a sua filosofia não se resumia a uma espécie de hedonismo desvinculado da sociedade, mas era ético, baseado no princípio de amizade e de justiça. O seu conceito de felicidade não era puro deleite carnal, mas especialmente um percurso para alcançar um estado de espírito.

Emma Bovary, que poderia ter sido a amante de Sergio, mas não foi, experimenta uma gangorra de emoções contrastantes: paixão, entrega, temor, terror. Dir-se-ia, em linguagem epicurista, que Emma tocava as sensações, mas o seu trágico destino impediu que dessa experiência ela extraísse uma ética.

E que ética era essa, segundo Epicuro? Em primeiro lugar, não era uma opinião. Apesar de ser um filósofo com pés fincados na realidade concreta, ele refutava a ideia de que a simples experiência fosse considerada uma evidência da verdade. Em outras palavras: Sergio não seduziria o filósofo grego. Isso porque, a ética epicurista, popularmente conhecida como uma busca autorreferencial de felicidade, na verdade exige um prazer racional que supera o prazer sensível. A felicidade para Epicuro é a serenidade alcançada ao fim do percurso. É a superação das dores do corpo e da alma. É um estado que parece impossível para quem foi traído por Sergio, o hipotético amante, e que nessas horas lê as mensagens que traíram toda a nação.

Parece, mas não é. A felicidade epicurista deve ser buscada na virtude, na justiça. Está na capacidade de avaliar os eventos específicos, de catalogá-los numa hierarquia e de compreender se são absolutos ou passageiros. Sergio, no fim das contas, foi uma estrela cadente, que não vale um copo de arsênico e não deve comportar outras tragédias sobre os descendentes, que nada têm a pagar pela ingenuidade dos pais. Já sofremos demais: é hora de reconhecer o papel de cada personagem nesse teatro grotesco e de seguir em frente com bases sólidas. Se não assumirmos a justiça como um imperativo ético, não alcançaremos uma felicidade real. Não resolveremos os problemas reais e urgentes que temos como país.

Aos que lembrarem a tradicional interpretação sobre o refuto de Epicuro em relação à política, convém lembrar que o filósofo condena o desejo de poder, não a aspiração de justiça. E se considerarmos que a política é a mais nobre forma de amizade social, está claro que Epicuro bem poderia oferecer uma perspectiva diferente daquela que vê nos seus ensinamentos uma busca de felicidade desvinculada da sociedade, numa vida escondida aos olhos alheios. Felicidade é saber avaliar quem nos trai, é praticar a socialidade no mais alto nível, é buscar a justiça, é vivenciar a ética. Se Epicuro e seus críticos não concordam com essa leitura extravagante, peço desculpas. Mas ninguém há de impedir que eu deseje ardentemente a felicidade como o happy end que todos temos o direito de ter, agindo etica e justamente.

Podemos tomar esse caminho, começando por nos libertar da síndrome de traição que levou Emma Bovary ao suicídio. Podemos trilhar a estrada da avaliação racional, meticulosa, atenta, aquela que Rita e Camilo, o amante do célebre conto A Cartomante, de Machado de Assis, não pegaram, preferindo a sentença: “adeus escrúpulos!” Parafraseando o nosso imortal das letras, podemos dizer que basta de vexames, sustos, remorsos e desejos, aquilo que Epicuro coloca na base do percurso, mas que certamente não é o objetivo da sua filosofia. A nós cabe a felicidade. Uma felicidade plural, social, ética. Sem correspondências que constrangem as instituições da República, com a certeza de que o nosso agir individual pode transformar o nosso país em um lugar melhor para vivermos e buscarmos ser felizes. Não há mais tempo a perder.

Sobre o autor

Gislaine Marins

Doutora em Letras, tradutora, professora e mãe. Autora de verbetes para o Pequeno Dicionário de Literatura do Rio Grande do Sul (Ed. Novo Século) e para o Dicionário de Figuras e Mitos Literários das Américas (Editora da Universidade/Tomo Editorial). É autora do blog Palavras Debulhadas, dedicado à divulgação da língua portuguesa.

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