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Sobre escrófulas e cloroquina

Vanildo Luiz Zugno

 

Cloroquina todo mundo já sabe o que é: um medicamente usado para prevenir ou controlar os efeitos da malária. Eu o conheço pessoalmente. Durante cinco anos tomei cloroquina como preventivo à malária e, até o fim dos meus dias, guardarei seus efeitos colaterais. O primeiro, pequenas coagulações no humor vítreo do olho direito. Elas fazem que, ao olhar para um fundo claro, eu enxergue pequenos pontos pretos movendo-se de um lado para outro. O outro é uma taquicardia que, graças aos medicamentos que tomo diariamente, está sob controle.

Tem gente que, contra todas as evidências disponíveis, acha que a cloroquina também serve para prevenir a Covid19. Resultado dessa crença é que, no final da pandemia – espero que seja para breve – haverá muitos brasileiros com problemas oculares, cardíacos e hepáticos (que eu não tive, graças a Deus!).

Já sobre as escrófulas, só fiquei sabendo delas ao ler as obras de Marc Bloch. No livro “Os Reis Taumaturgos”, o historiador francês faz um estudo sobre um curioso fenômeno medieval: a crença de que os reis da França e da Inglaterra tinham o poder de, com o toque das mãos, curar os doentes afetados por este terrível mal. Geralmente associadas à tuberculose, as escrófulas têm sua origem na inflamação dos gânglios linfáticos na região do pescoço. Nos casos graves, a inflamação chega à fistulização e o aspecto do paciente se torna deveras repugnante.

Do séc. XII ao séc. XVII, tanto na França como na Inglaterra, milhares de pessoas, anualmente, vinham até o rei para serem tocadas e curadas. Em ambas as nações, estabeleceu-se um ritual litúrgico que era praticado regularmente pelo monarca de turno.

Tal prática se baseava na afirmação de que o rei, pela unção recebida no dia da sua entronização, passava a ser uma pessoa sagrada e, como tal, tinha o poder de curar. Era o mesmo poder exercido por Jesus e pelos santos. E com uma vantagem: tal poder não dependia da santidade pessoal do rei, mas da unção por ele recebida na entronização.

A essas alturas você já deve estar se perguntando: mas, e as pessoas, realmente ficavam curadas? A resposta é “sim”! Quem vinha ao rei e recebia seu toque e sua bênção, efetivamente ficavam curado... Como? Simples: as escrófulas são uma inflamação cíclica. Após a supuração, elas, por si mesmas, fecham seu ciclo e cicatrizam. Tal processo era favorecido pelo fato de os doentes terem que aguardar perto do palácio por alguns dias à espera do ritual. E enquanto aguardavam recebiam boa alimentação. E, depois do toque, ainda recebiam do rei uma esmola que lhes permitia manter a boa alimentação. Com descanso e comida, a imunidade aumentava e as escrófulas fechavam seu ciclo até nova irrupção.

Naquela época, claro, não havia os conhecimentos médicos que temos hoje. E os milagres faziam parte do cotidiano. Aconteciam todos os dias e em toda parte. E isso não porque naquele tempo Deus interviesse mais que hoje no cotidiano das pessoas. Mas porque as pessoas estavam predispostas a acreditar neles. Dentro da compreensão da época, não havia separação entre o sagrado e o profano. Deus e seus auxiliares, os santos e os anjos, bem como Satanás e seus diabinhos, conviviam lado a lado com as pessoas e intervinham no dia a dia e em todos os âmbitos da vida.

O que os reis fizeram – e nisso esteve a sua genialidade política – foi usar a ignorância e a crença nos milagres para consolidar a instituição real. Assim explica Marc Bloch essa jogada fenomenal dos monarcas franceses e ingleses: “Para que uma instituição destinada a atender a fins precisos indicados por uma vontade individual possa impor-se a todo um povo, é necessário ainda que ela seja sustentada pelas tendências profundas da consciência coletiva; e talvez, reciprocamente, para que uma crença um pouco vaga possa concretizar-se num rito regular, não seja indiferente que algumas vontades conscientes ajudem-na a tomar forma.”

Voltando à nossa conhecida cloroquina e outras crenças sem evidência científica, devemos nos perguntar não apenas sobre as intenções dos que as querem impor à população. Devemos nos perguntar também quais são as “tendências profundas da consciência coletiva” que tornam essas mentiras aceitáveis para uma parcela significativa da população.

A Covid19 é um desafio à medicina. No Brasil, tornou-se uma questão política. Mas o mais profundo e grave, é que ela está revelando muito sobre as profundezas culturais de nossa nação.

Sobre o autor

Vanildo Luiz Zugno

Frade Menor Capuchinho na Província do Rio Grande do Sul. Graduado em Filosofia (UCPEL - Pelotas), Mestre (Université Catholique de Lyon) e Doutor em Teologia (Faculdades EST - São Leopoldo). Professor na ESTEF - Escola Superior de Teologia e Espiritualidade Franciscana (Porto Alegre)."

 

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