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Ser imortal, morrer duas vezes

Gislaine Marins

 

A imortalidade não anula o percurso humano. Pelo contrário, quanto mais humano é o percurso de uma pessoa, mais a sua memória se impregna de elementos indeléveis. A imortalidade é um acúmulo de humanidade.

Assim foi com um professor nascido na Bahia, há mais de um século. Filho de uma família abastada, recebeu as melhores oportunidades que um jovem gostaria de ter: conhecer a Europa, estudar nas melhores universidades americanas, conquistar reputação profissional. O professor foi precursor, no Brasil, de um modelo de escola pública, laica e integral, inspirado no modelo norte-americano que conheceu e admirava.

Nos anos 30, o professor achava que a educação era um fator fundamental para o nosso país: não bastava alfabetizar, era preciso educar intelectual, tecnologica e socialmente. Suas ideias não foram muito bem recebidas pelo poder federal. O professor resolveu então voltar para seu Estado, onde foi acolhido e pôde fundar uma escola. Admirado no exterior, o professor acabou indo para a Unesco. Reabilitado politicamente, no início dos anos 50, ele ocupou cargos importantes em nível nacional, que permitiram dar início às reflexões sobre uma lei nacional para o ensino público. Com o golpe militar de 64, o professor recebeu aposentadoria compulsória, um modo sutil para mandar recados aos que já não são benvindos. Passou a lecionar em universidades americanas. Retornou ao país alguns anos mais tarde, com uma reputação cada vez maior. Seu nome passou a ser cogitado para a Academia Brasileira de Letras.

Foi aí que ocorreu a sua primeira morte. O professor tinha um encontro marcado com Aurélio Buarque de Holanda, um dos mais célebres lexicógrafos do nosso país. Tendo concordado em concorrer a uma vaga para a Academia, iria conversar sobre isso com Aurélio, que era acadêmico. Mas o encontro não ocorreu. O professor, segundo os primeiros laudos, caiu no poço do elevador do prédio onde haveria o encontro e morreu.

Há uma outra morte que paira no ar e até hoje não pôde ser demonstrada por falta de provas. Tal morte entraria no rol dos casos que ainda pedem esclarecimento para uma completa conciliação com a nossa história. É estranho que um país democrático não queira fornecer todos os elementos para eliminar dúvidas. Mas há uma morte intelectual do professor, incontestável: seu modelo de educação foi enterrado pela reforma que privilegiou a formação profissionalizante, reduzindo o ensino à instrução e não à educação.

Com a redemocratização, seria um amigo do professor a propor no Congresso Nacional uma nova lei para a educação brasileira, que retomava em parte os seus ideais. Foi um momento de grandes esperanças e participação, ainda embalado pela recente aprovação da nova Constituição: o projeto foi amplamente debatido pela comunidade escolar e universitária antes da aprovação definitiva no Congresso. Ideias podem ser enterradas, mas renascem.

O professor é um dos patronos da educação brasileira. O professor era um liberal. Jamais alimentou ideais comunistas. O seu nome era Anísio Teixeira. Suas ideias escaparam ao poço do elevador da história. Hoje, diante de mais uma reforma que ameaça a educação das nossas crianças e dos nossos jovens, diante das ameaças aos profissionais da educação, convém lembrar: Anísio vive em cada professor que honra o código ético da profissão, que acredita que a educação é a mais importante oportunidade para reduzir desigualdades sociais e promover o progresso humano. Anísio é imortal.

Sobre o autor

Gislaine Marins

Doutora em Letras, tradutora, professora e mãe. Autora de verbetes para o Pequeno Dicionário de Literatura do Rio Grande do Sul (Ed. Novo Século) e para o Dicionário de Figuras e Mitos Literários das Américas (Editora da Universidade/Tomo Editorial). É autora do blog Palavras Debulhadas, dedicado à divulgação da língua portuguesa.

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