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São Francisco e os animais

Vanildo Luiz Zugno

 

Início de outubro e a mesma cena em inúmeras Igrejas: filas e filas de pessoas com seus animais para serem abençoados. A maioria são cães. Também há muitos gatos. E pássaros de todas as cores e plumagens. E não deixam de aparecer as lagartixas, tartarugas, peixes e iguanas. E alguns até estranhos para a vida doméstica: galinhas, mini-porcos, cabras, guaximins...

Estima-se que hoje, no Brasil, haja em torno de 150 milhões de animais domésticos: 55 milhões de cães, 25 milhões de gatos, 25 milhões de peixes ornamentais, 40 milhões de aves ornamentais e 2,5 milhões de répteis e pequenos mamíferos. Toda esta população animal gera um mercado de aproximadamente 40 bilhões de reais. Em plena pandemia, o “mercado pet” foi um dos que mais cresceu no Brasil: 13,5% no ano de 2020. Apenas para efeito de comparativo, o Bolsa Família, programa do governo federal destinado ao segmento mais pobre da população humana brasileira e que atende de 15 milhões de pessoas, teve, em 2019, um orçamento de 30 bilhões de reais.

A tendência, segundo especialistas do setor pet, é a de “humanização dos animais” com oferta de produtos premium, rações especiais e produtos de higiene que facilitam a convivência dos bichos de estimação com os humanos, bem como serviços veterinários, banho, tosa, fitness e hotelaria. Segundo um dos maiores empresários do setor, “o animal que ficava do lado de fora da casa e se alimentava com restos de comida, virou um filho”. Nesta descrição, claro, não estão incluídos os animais que acompanham as milhares e milhares de pessoas que, em todas as cidades do Brasil, desde as metrópoles até as pequenas interioranas, vivem na rua e se alimentam das sobras das comidas que já não são destinadas aos animais.

Mas voltando à bênção dos animais nos perguntamos: o que diria de tudo isso o santo que é invocado como protetor dos animais? Nessa questão que sempre provoca muita polêmica, é melhor deixar o santo falar. Na Primeira Regra, Francisco fala explicitamente da questão e diz: “Ordeno a todos os meus irmãos que de modo algum criem qualquer animal, nem junto a si mesmos, nem com outra pessoa, nem de qualquer outra forma”. É uma das poucas ordens que Francisco dá aos irmãos. Normalmente, ele pede ou aconselha. Aqui, ao se tratar de animais, ele ordena que os frades jamais os possuam.

Mas então, São Francisco não gostava dos animais? Ele gostava, sim. Podemos vê-lo em várias passagens das diversas biografias do santo. No relato de Tomás de Celano, há três episódios que mostram a relação que o Santo de Assis estabeleceu com três animais: um pássaro aquático, um faisão e uma cigarra. O pássaro aquático é trazido a Francisco por um pescador a fim de alegrar o santo em sua doença. Depois de ouvir o pássaro, ele “ordenou com bondade à ave que voltasse sem medo à sua primitiva liberdade”. Ao faisão, Francisco deixa a liberdade para escolher entre “morar conosco ou ir para os lugares de costume, que são mais adaptados para ele”. Quanto à cigarra, depois de desfrutar de seu mavioso canto, Francisco a despede para que parta livremente.

Quanto ao famoso Lobo de Gubbio, Francisco não o acorrenta e nem o encerra num tenebroso canil. Simplesmente o alimenta e lhe permite retornar a seu ambiente original.

Francisco ama os animais. Mas como seu amor é verdadeiro, não os quer submissos e a serviço do seu prazer. Ele quer os animais livres, vivendo em seu ambiente natural e sendo o que eles são e não instrumento para a satisfação das carências humanas. Quem escraviza animais pelo prazer que eles lhe proporcionam ou para suprir as próprias carências, não está vivendo o espírito de São Francisco. Muito antes pelo contrário...

O que fazer, então, com os 50 milhões de animais presos nas casas e apartamentos. Libertá-los seria condená-los à morte na selva urbana. É responsabilidade de quem os aprisionou cuidá-los até o fim de suas vidas. E, mais importante ainda, interromper o mercado de exploração animal não comprando outros para substitui-los na escravidão.

Quanto aos humanos que não conseguem viver sem o amor de um animal, para esses, talvez seja aconselhável procurar um psicólogo e desvendar as razões que o impedem de amar e deixar-se amar por humanos. O amor, como lembra outro santo medieval, Santo Tomás de Aquino, nos torna iguais àquilo que amamos. Se amamos a Deus, nos tornamos divinos. Se amamos os humanos, nos humanizamos cada vez mais. Quanto aos animais, cabe-nos apenas deixar que vivam livres em sua animalidade feliz.

Que São Francisco nos ajude neste caminho.

Sobre o autor

Vanildo Luiz Zugno

Frade Menor Capuchinho na Província do Rio Grande do Sul. Graduado em Filosofia (UCPEL - Pelotas), Mestre (Université Catholique de Lyon) e Doutor em Teologia (Faculdades EST - São Leopoldo). Professor na ESTEF - Escola Superior de Teologia e Espiritualidade Franciscana (Porto Alegre)."

 

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