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Redescobertos

Gislaine Marins

Fomos descobertos duas vezes: a primeira, de forma colonial, a segunda como tentativa de verdadeiro encontro e de reconciliação.

O meu coração ainda está comovido desde que, no início deste ano, foi instituído pela primeira vez na nossa história um Ministério dos Povos Originários. Em 1988, quando o Brasil conquistava a sua Constituição democrática, eu alcançava a maioridade e os nossos indígenas finalmente deixavam de ser considerados pessoas sob a tutela do Estado, sem direito a voto, sem direito a emprego público, sem direito a passaporte, sem direito à plena cidadania. O preconceito cultural que se arraigou entre nós possui um lastro institucional que excluiu, subjugou e impôs a hegemonia da cultura brasileira – se é que podemos falar de cultura brasileira no singular – em detrimento da nossa diversidade e riqueza culturais.

Soma-se a essa emoção a recente notícia, que tem por protagonista um eminente poeta, uma pessoa de profunda cultura e sensibilidade. Refiro-me ao Cardeal  José Tolentino de Mendonça, atual Prefeito do Dicastério para a Cultura e a Educação na Santa Sé. Português de nascimento, a vida encarregou-se de conceder-lhe uma visão de mundo bem maior que o seu país natal. Então é uma alegria imensa descobrir que é este Cardeal português a estar à frente do máximo órgão cultural do Vaticano e a ser um dos subscritores da nota que reavalia e distancia-se da doutrina dos descobrimentos, que justificou a dominação colonial e permitiu o escandaloso tráfico de escravos que marcou toda a Idade Moderna ocidental, atravessando as fronteiras da Idade Contemporânea e concluindo-se definitivamente apenas com a libertação das últimas colônias africanas, a partir de meados do século XX.

Os descobrimentos não comportaram somente os abomináveis fatos e métodos de submissão do colonialismo. Os europeus descobriram que o mundo era bem maior do que pensavam e é divertido ver a evolução dos mapas, com os contornos das Américas que aos poucos vão sendo agregados à imagem de mundo que as populações europeias possuíam. A ciência náutica teve um desenvolvimento extraordinário, com repercussões até a era do GPS. A Terra tornou-se definitivamente redonda. A culinária europeia tornou-se um pouco americana: as batatas fritas francesas, a pizza com tomate italiana e o chocolate suíço não seriam especialidades sem as descobertas.

Talvez os europeus devam repassar bem essas lições para não perpetuarem erros históricos: de fato, enquanto no Brasil era instituído o Ministério dos Povos Originários, na Itália instituía-se o Ministério da Soberania Alimentar. Por honestidade intelectual, deveriam ter instuído o Ministério da Multiculturalidade Alimentar, pois não existe pizza margarita e nhoque sem as Américas, nem Cristóvão Colombo teria entrado para os livros de história se não tivesse realizado as descobertas.

Até aqui, isso. Agora, porém, surge uma esperança nova: que não sejam apenas os povos originários a serem redescobertos na sua plena dignidade, mas possam encontrar o espaço para vivenciarem as suas culturas em pé de igualdade, superando os insuportáveis estereótipos e a visão exótica que por tempo demais caracterizou o modo ocidental de descrever as culturas alheias. Uma esperança nova, pois se sabe que o tempo para o reconhecimento da grandeza das línguas indígenas, das artes indígenas, das organizações sociais e econômicas indígenas, é enorme. Significa suspender as hierarquias cristalizadas na história, segundo as quais as culturas indígenas eram primitivas e deviam ser elevadas. As pessoas indígenas eram atrasadas e deviam ser civilizadas. Nunca soubemos olhar e aplicar as leis com justiça, mas moldamos as nossas colônias, o nosso regime econômico e a nossa visão cultural sob o prisma da submissão dos povos originários aos padrões europeus e aos seus objetivos de aumento da riqueza (que excluía indígenas e escravos).

É uma esperança nova: de que possamos finalmente superar os nossos preconceitos, que estão na base da nossa tolerância com a escravidão moderna, da nossa resignação diante da pobreza histórica daqueles que sempre foram subjugados, da nossa indiferença em relação à violência de matriz colonial que continua a agir na invasão de terras indígenas e no desmatamento das nossas florestas.

Sei que toda esperança surge para prolongar a nossa resistência e para nutrir a nossa persistência. Em outras palavras: é um bom começo, mas não é fácil. De todo modo, vale a pena. Porque a única coisa que vale a pena no mundo é permanecer humano. E a humanidade, a gente sabe, vê-se na reciprocidade, na capacidade de conviver com a diferença, na postura, não nas palavras de ocasião, não na aceitação da aniquilação dos outros, como se fosse uma fatalidade e não uma conivência. Estou alegre. E um pouco triste também. Como sempre é e será, pois se tornar humano é o nosso próprio objetivo, sentido e percurso nesse mundo. Sigo. Sigamos.

Sobre o autor

Gislaine Marins

Doutora em Letras, tradutora, professora e mãe. Autora de verbetes para o Pequeno Dicionário de Literatura do Rio Grande do Sul (Ed. Novo Século) e para o Dicionário de Figuras e Mitos Literários das Américas (Editora da Universidade/Tomo Editorial). É autora do blog Palavras Debulhadas, dedicado à divulgação da língua portuguesa.

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