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Raiana, ou uma janela para a liberdade

Vanildo Luiz Zugno

Janela, fenestra ou ventana. Uma abertura, geralmente a meia altura, nas paredes externas de uma construção. Um buraco protegido. Por vidro, tela, grade, persiana, veneziana. De muitos materiais: madeira, ferro, alumínio, plástico. Em muitos formatos. Pequenos buracos, de parede inteira, panorâmicos, quadrados, redondos, alongados, hexagonais, verticais, horizontais, ogivais como as das góticas catedrais. Janelas de correr, de bater, basculantes.

Em muitas formas, uma só função: permitir, proibir, inibir. De entrar ou de sair. A janela é um regulador. De luz, de ar, de som, de frio ou calor. Na justa medida. De dentro para fora. E do exterior para o interior. Um excelente engenho controlador. Conforme a necessidade. Conforme a curiosidade. Há janelas discretas de cortinas repletas que impedem a vista do interior. E há as indiscretas que do alto contemplam tudo o que passa no exterior.

Janelas não são para pessoas. Gente passa por uma janela de um tipo diferente. Uma janela que chamamos de porta. Uma designação meio torta. Um buraco na parede que vai até o chão. Igual a uma janela. Só que até o chão. Regula a entrada de luz, ar, som, frio e calor. Igual a uma janela. Só que até o chão. Em muitos materiais e formas. Assim como as janelas. Só que até o chão. Com diferente função. Portas são para gente. Para entrar e sair. Ou para impedir.

Raiana Ribeiro da Silva entrou pela porta. Bairro Boca do Rio, Salvador, Brasil, agosto de 2021. A porta se abriu cumprindo sua função. Raiana entrou. Melina Esteves França fechou. Gente do bem a patroa. Anúncio na internet. Pouco trabalho. Bom salário. Comida boa. A porta não mais abriu, sua função cumpriu. Raiana de sair impediu. Ela não pode mais fugir. O apartamento virou prisão. Cuidar de três crianças a escravidão. Sem descanso. De noite e de dia. Todo dia. Todos os dias. Sem comida. Sem água. Sem descanso. Sem salário. Esse seu trabalho diário. Dormir no chão. Ao primeiro pedido de socorro, cortada a comunicação. Você acha que acabou a escravidão?

A janela trancada. De alto a baixo fechada. Encadeada. A liberdade cerceada. A servidão dos avós, bisavós, trisavós rememorada, revivida, renovada. A África-Brasil reescravizada. Patroa branca não pode viver sem escrava. Babá. Ama-de-leite. Cozinheira. Copeira. Faxineira. Lavadeira. Patroa branca tem mais o que fazer. Cabelereiro, manicure, pedicure, whatsapp, instagram, facebook, as amigas, reais e virtuais, shopping, praia e tudo mais.

Vivemos em outro mundo. Corremos em outra raia. Se reclamar bate, espanca, fere, deixa manca. No banheiro tranca. Pequeno cubículo. Escuridão. Uma pequena ventilação. Uma janela. Pequena. Mal entra o ar apenas. Basculante. Raiana olha hesitante. Sobe na pequena estante. Uma janela de oportunidades. O caminho para a liberdade. Desliza seu magro corpo no estreito vão. Três andares. A rua embaixo. Carros, gente, confusão. Arriscar a morte é melhor que a escravidão. Fecha os olhos. Lança o corpo. Tombo no chão. Brasil século XXI. A memória da escravidão.

Sobre o autor

Vanildo Luiz Zugno

Frade Menor Capuchinho na Província do Rio Grande do Sul. Graduado em Filosofia (UCPEL - Pelotas), Mestre (Université Catholique de Lyon) e Doutor em Teologia (Faculdades EST - São Leopoldo). Professor na ESTEF - Escola Superior de Teologia e Espiritualidade Franciscana (Porto Alegre)."

 

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