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Prestidigitadora

Gislaine Marins

Queridas leitoras e leitores: eu menti. Eu ocultei, eu disfarcei, eu distraí a atenção de vocês. Durante meses escrevi sobre conceitos, emoções, momentos que vivi, omitindo que o meu objetivo final era outro. Sim, eu enganei vocês. Eu não sou o que vocês pensam, não escrevo sobre aquilo que vocês acham, vocês não leem aquilo que imaginam. Confesso a minha culpa: eu sou a cronista de um assunto só.

Gostaria de aproveitar que o ano se aproxima do fim para expiar os meus erros. Então esta semana vou contar os meus truques.

Eu posso começar um texto partindo de uma sensação, de uma palavra ou de um fato. Então eu construo uma arquitetura precária, mas funcional, com palavras bonitas e surpreendentes, que capturam a atenção do leitor.  Se o leitor está triste porque a vida anda difícil, eu posso, com três ou quatro imagens, sugeridas a partir de uma paisagem que não poderá ser desmentida por ninguém que esteja isolado pela pandemia, desviar a atenção dos leitores para algo que pode tranquilamente ser inventado e não ter nenhuma relação nem com a minha realidade e não com a de vocês. Mas distrair ajuda: ajuda a não pensar, a não resolver os problemas, ajuda a adiar. Desculpem: distrair também ajuda a ser criativo, embora a criatividade hoje seja uma espécie de arte da decifração de manuscritos. Dependendo do alfabeto utilizado, ninguém irá contestar as hipóteses que forem levantadas. Com essa inútil certeza, peguei gosto pelo engano e continuei inventando as coisas mais absurdas, fazendo análises a partir delas e colocando-me à mercê de qualquer complotista, que pode refutar tudo o que afirmo do alto das suas convicções, meras convicções.

Ele ainda será capaz de me condenar, sem apelo, dizendo: se você pode inventar, por que não posso conjecturar? Ultrapassamos o Rubicão dos significados, colocando no mesmo patamar o que é totalmente falso e as falsidades que construímos com aparência de realidade para interpretar o que não aconteceu, deturpando o que de fato ocorreu.

Se eu caí nessa armadilha, vaidosa dos meus míseros sucessos, cometi ainda outro erro: induzi os meus leitores ao engano, agindo como a falsa inocente que declara ter praticado as piores ações com as melhores intenções. Por isso, hoje estou determinada a obter o perdão. Sigo contando os truques.

Capturada a atenção dos leitores, a prestidigitadora agarra a sua atenção, como Rita, que se deixa levar pela paixão e acaba morta no conto A Cartomante, de Machado de Assis. As pessoas acham que uma palavra não pode mudar a realidade, que a palavra é inofensiva. Sem querer, são convencidas, manipuladas, entrando em simbiose com a forma de pensar do autor. Esse é o segundo nível de maestria da prestidigitadora das palavras. A cronista de um assunto só usa variados subterfúgios para introduzir os leitores em um mecanismo mental, de modo que cheguem ao fim do texto concordando com o que foi exposto ao longo dos parágrafos. É algo terrível, eu sei. Desculpem.

Por fim, a prestidigitadora comete um último erro, que irei definir aqui como falha de caráter ou defesa da honra. Ela não é a única a utilizar esses instrumentos para controlar a leitura e a interpretação que fazem dos seus textos. Ela pertence a uma comunidade de pessoas que escrevem e interagem publicamente. O seu é o mundo dos prestidigitadores. Ela se sente protegida nos seus crimes, pois se compara com jornalistas, políticos, professores, advogados, apresentadores, promotores que fazem o mesmo e juram que não. Se todos negam os seus atos e não são desmascarados, por que a prestidigitadora de um assunto só seria descoberta? Ela se defende, barricada na sua hipocrisia. Mas não hoje: hoje é o dia de contar toda a verdade, sem retirar uma vírgula.

O meu assunto é sempre o mesmo: compreender o que acontece quando nos comunicamos. Eu posso partir de uma flor, de uma árvore, de um bosque, de um viaduto, de uma viagem. O ponto de chegada é sempre o mesmo: por que temos tantas dificuldades para compreender? Será que é porque uso metáforas? Será que é porque faço comparações? Será devido aos paralelismos? Será por causa da busca impossível da descrição perfeitamente correspondente? Será por causa do silêncio que se interpõe entre cada palavra, cada frase, cada letra e cada suspiro?

Desculpem, mas saibam: estão enganando vocês. Há muito tempo, por muitos meios. Na próxima semana iniciarei um curso sobre a magia das palavras. No próximo ano, um dos meus objetivos é ensinar a desvendar segredos. A minha turma será formada por magos do bem, que saibam pedir desculpas aos leitores e saibam confessar os seus truques.

Sobre o autor

Gislaine Marins

Doutora em Letras, tradutora, professora e mãe. Autora de verbetes para o Pequeno Dicionário de Literatura do Rio Grande do Sul (Ed. Novo Século) e para o Dicionário de Figuras e Mitos Literários das Américas (Editora da Universidade/Tomo Editorial). É autora do blog Palavras Debulhadas, dedicado à divulgação da língua portuguesa.

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