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Pobres, ma non troppo

Gislaine Marins

Pobres, ma non troppo

 

Dia 15 de novembro celebrou-se o dia dos pobres, uma condição humana com muitas facetas. Uma delas: a da comunicação.

Ninguém nasce pobre em termos de expressão linguística. Ao longo da vida, podemos ser empobrecidos, como os pobres são depauperados das condições financeiras para a sua sobrevivência digna. De fato, a língua é um fato biológico, antes de tudo: nascemos com a capacidade de ouvir, de aprender a falar e a escrever. Nascemos com condições de nos expressarmos em qualquer língua e mesmo que falemos apenas a nossa língua materna, somos expostos a outros idiomas, que apreendemos sem pensar, fazendo deles parte da nossa bagagem.

Com a experiência em sociedade, a língua adquire maior amplitude, sendo inclusiva ou excluindo, de acordo com a política adotada para a educação. No nosso caso, vivemos em um sistema claramente excludente e competitivo, que privilegia a forma e não cultiva as qualidades e o potencial de cada pessoa para o bem da coletividade. Somos empobrecidos, embora haja muitos mestres que lutem contra a correnteza.

O dia dos pobres deveria ser uma data para refletir sobre a nossa comunicação, veículo de contato de fundamental importância no sistema de convivência que criamos. Os direitos básicos de cada pessoa passam pela capacidade de decifrar o jargão usado para codificar as leis. Se excluem da educação básica a possibilidade de lidar com a linguagem jurídica, seremos espoliados de algo que potencialmente nos pertence, mas do qual precisamos tomar posse. Se excluem a linguagem científica do nosso leque de aprendizagens, ficamos à mercê de distorções que alteram e podem chegar a falsificar os dados da realidade. Se a expressão dos sentimentos é secundária em relação à análise dos elementos objetivos da frase, deixamos de treinar a habilidade para a interpretação dos efeitos entre o que é dito e o que é de fato ouvido, sobre o que se sente ao escutar algo. Não por acaso, lidamos mal com a violência, com as paixões, com a inveja, com o que é justo e injusto, com a política, com as catástrofes, com as doenças, com os quiproquós em geral que a vida nos apresenta. Não treinamos, sofremos os efeitos da comunicação.

O dia dos pobres também deveria fazer pensar sobre os nossos preconceitos em relação ao que se considera uma língua difícil e inacessível. Esses estereótipos servem para excluir as pessoas e impedir que, adquirindo domínio sobre a sua língua e competência em outros idiomas, possam ser autônomas nas suas conclusões e possam deixar de ser dependentes de interpretações alheias. Servem para empobrecer a nossa existência, para cortar as asas dos nossos sonhos de contato com uma comunidade mais ampla, além daquela que a experiência prática nos consente.

Dizem ainda que as línguas mortas são inúteis e isso se constata não apenas pela indiferença geral, mas pela ausência das línguas antigas nos currículos escolares. Pois eu costumo dizer que línguas mortas não existem. As mais conhecidas entre nós, o grego antigo e o latim, continuam perfeitamente em forma, azeitando os significados das palavras que usamos, deixando os seus vestígios na pronúncia, lembrando que vida e morte, para as línguas, é uma questão relativa. O que existe, ao contrário, é a extinção das línguas, um processo que ocorre quando os seus falantes são perseguidos, depauperados, assassinados, assimilados à força. As línguas desaparecem por falta de falantes e de estudos que possam preservá-las e incorporá-las no patrimônio cultural das sociedades. É um processo que vimos ao longo de toda a colonização das Américas e que continuamos a constatar, lamentavelmente, quando percebemos o risco de extinção que muitos povos indígenas estão sofrendo.

O dia dos pobres deveria levar a ver a nossa comunicação como um processo vivo e dinâmico. Se nascemos potencialmente ricos, seremos sempre, em alguma medida, pobres, porque não há quem possa dizer que tem completo domínio na arte da comunicação. Admitir a condição de pobre é um gesto de humildade diante de um fenômeno que se transforma, evolui, retrocede e requer continuamente a reinvenção das nossas habilidades comunicativas.

É nessa pobreza que se dá o encontro entre as pessoas. A comunicação é sempre a tentativa para achar um ponto em comum, um consenso, um sentido partilhado, uma concórdia. Por isso, somos todos pobres, ma non troppo, não muito, como dizem os italianos, porque sabemos que a nossa pobreza é a condição necessária para sair da nossa miséria, mas a pobreza é, ao mesmo tempo, insuperável, pois se reapresenta todas as vezes que fazemos a experiência mais estimulante da vida: o estar e entrar em comunicação com o outro.

 

Sobre o autor

Gislaine Marins

Doutora em Letras, tradutora, professora e mãe. Autora de verbetes para o Pequeno Dicionário de Literatura do Rio Grande do Sul (Ed. Novo Século) e para o Dicionário de Figuras e Mitos Literários das Américas (Editora da Universidade/Tomo Editorial). É autora do blog Palavras Debulhadas, dedicado à divulgação da língua portuguesa.

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