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Pedro, Paulo e o martírio do cotidiano

Vanildo Luiz Zugno

 

A Basílica de Santa Maria del Popolo, em Roma, guarda duas das principais obras do pintor italiano Michelangelo Merisi, o Caravaggio: “O martírio de São Pedro” e “A conversão de São Paulo”.

Na primeira, o artista, seguindo a tradição, representa o martírio de São Pedro por crucificação. Segundo antigas tradições, Pedro foi condenado à morte no período da perseguição do Imperador Nero, por volta do ano 64 d.C., na cidade de Roma. O pescador galileu pediu a seus algozes para ser crucificado de cabeça para baixo. Desse modo, ele não se igualaria a seu Mestre, Jesus Cristo. Na tela, três soldados romanos, com os rostos obscurecidos, têm dificuldade em levantar o corpo do ancião que observa resignadamente a própria mão transpassada pelo cravo.

Na segunda tela, a conversão de Paulo é apresentada com detalhes que mesclam a narrativa bíblica com a tradição apócrifa. Estando Saulo a caminho de Damasco com ordens para capturar os membros da seita dos cristãos, foi tocado por uma luz que o fez cair por terra e o cegou. Diferentemente da narração bíblica, a tradição diz que Saulo “caiu do cavalo”. Na tela, Caravaggio retrata Saulo com as características de um soldado romano: armadura, espada e manto vermelho. Mas o cavalo não está aparelhado para a montaria e o combate. Paulo está no foco de luz. O cavalo, meio sombra, meio luz. E o servo de Paulo apenas emerge das trevas.

Vendo as duas telas, vem uma pergunta: por que não pintou Caravaggio, em paralelo ao martírio de Pedro, o martírio de Paulo? Segundo a tradição, Paulo também sofreu o martírio na perseguição de Nero. Ele teria sido decapitado em Roma. Segundo as normas romanas, os estrangeiros, como Pedro, podiam ser submetidos à pena mais degradante da crucificação. Já os cidadãos romanos – e, segundo a tradição, esse era o caso de Paulo – ao terem constatado o crime de traição à pátria, sofriam a decapitação, uma forma mais digna de morte segundo os padrões da época.

Sejam quais forem as motivações que levaram o pintor italiano a não apresentar, lado a lado, os dois martírios, os quadros nos lembram da forma da morte dos dois apóstolos símbolo dos primórdios cristãos. Tanto Pedro, o evangelizador dos judeus, como Paulo, o evangelizador dos gentios, sofreram a morte violenta por parte do poder dominante da época, o Império Romano.  A perseguição a ambos, no entanto, iniciara já na sua terra natal, na Palestina, e foi movida pelas mesmas autoridades do povo judeu que haviam crucificado Jesus. Os mesmos sacerdotes que entregaram Jesus a Herodes e a Pilatos, também fizeram de tudo para que Pedro e Paulo deixassem de anunciar a doutrina do amor e da misericórdia de Jesus. Como no caso de Jesus, fizeram isso não por serem maus. Antes pelo contrário. O Sumo Sacerdote Caifás e seu Sinédrio composto por 70 homens espertos nas leis religiosas judaicas, tanto na condenação de Jesus, como nas perseguições a Pedro e Paulo, apresentavam-se como convictos defensores de Deus e da religião.

É difícil, na distância do tempo e das culturas, fazer qualquer juízo sobre o caráter pessoal das autoridades religiosas judaicas. O fato é que, um olhar atento nos permite ver que, mais do que defender a seu povo e sua religião, o Sumo Sacerdote e o Sinédrio, além de defender seus interesses pessoais de donos da religião e do poder econômico, estavam fazendo o jogo do império estrangeiro na sua dinâmica de dominar o povo judeu.

E se a história tivesse sido diferente? Se Pedro e Paulo não tivessem sido perseguidos pelas autoridades de seu povo e tivessem tido um final de vida menos dramático? Mesmo parecendo a muitos iconoclasta, esta alternativa não é desconhecida da Bíblia. Pelo contrário, é apresentada positivamente pelo livro dos Atos dos Apóstolos. Segundo este livro, no capítulo 28, chegando prisioneiro em Roma, “Paulo morou dois anos numa casa alugada, vivendo às custas de seu próprio trabalho. Recebi a todos os que o procuravam, pregando o Reino de Deus. Com toda coragem e sem obstáculos, ele ensinava as coisas que se referiam ao Senhor Jesus Cristo”.

Um final menos heroico, mas não por isso menos desafiador. O apóstolo dos gentios, o grande Paulo, morando de aluguel e vivendo do trabalho de suas mãos, com a porta da casa sempre aberta para receber a todos os que o buscassem. Uma descrição muito distante do imaginário do poder que associamos aos apóstolos e seus sucessores. Um grande desafio para uma igreja que se quer em constante saída e juntos aos pobres da sociedade e da própria Igreja. Parafraseando o Papa Francisco, esta seria uma outra forma de martírio. Não o martírio da cruz ou o da decapitação, mas o martírio do cotidiano, de viver a fidelidade a Jesus Cristo não apenas em situações extraordinárias, mas no ordinário do dia-a-dia. Um martírio já vivido por pessoas que moram na porta ao lado, mas pouco notado por muitos que se dizem defensores de Deus e da religião. Um desafio para as autoridades religiosas de hoje. E um desafio para todos os que se dizem seguidores de Jesus de Nazaré, a exemplo de Pedro e de Paulo.

Sobre o autor

Vanildo Luiz Zugno

Frade Menor Capuchinho na Província do Rio Grande do Sul. Graduado em Filosofia (UCPEL - Pelotas), Mestre (Université Catholique de Lyon) e Doutor em Teologia (Faculdades EST - São Leopoldo). Professor na ESTEF - Escola Superior de Teologia e Espiritualidade Franciscana (Porto Alegre)."

 

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