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Palavras, palavras, palavras...

Vanildo Luiz Zugno

Os tristes dias de verborragia escatológica presidencial que somos obrigados a suportar, fazem-me lembrar com saudades da juventude, dos tempos de Faculdade de Filosofia e das aulas do querido professor Jandir JoãoZanotelli. A lembrança é boa, mesmo que suscitada pela contradição. Sim. Tudo o que ouvimos agora da Primeira Boca do Brasil, vai exatamente em sentido contrário do que o então professor e depois Reitor da Universidade Católica de Pelotas nos ensinava lá na metade dos anos oitenta, tanto na forma como no conteúdo.

Nas longas aulas noturnas que escorriam rapidamente sem percebêssemos os ponteiros girarem, o grande professor (tanto na forma como no conteúdo!), com sua fala mansa e bem elaborada, conduzia-nos pelos caminhos da amizade ao saber. E o fazia dando-nos a conhecer os grandes pensadores de todos os tempos, dos pré-socráticos aos existencialistas e latino-americanos. Suas explicações se tornavam claras e saborosas com as histórias do cotidiano e as citações musicais que iam da atávica música nativista aos irreverentes Demônios da Garoa. E claro, como não podia deixar de ser naqueles tempos de ditadura decadente, os comentários políticos correntemente se faziam presentes. Até porque o professor Jandir não era apenas um professor. Ele era um educador, um pedagogo no sentido freiriano, um homem engajado na reconstrução democrática, um político no senso estrito da palavra, uma pessoa comprometida com os pobres daquela cidade emprobrecida do sul do Rio Grande do Sul. E todo esse compromisso transbordava em palavras que nos cativavam e desafiavam a pensar, a falar, a agir.

Mas o conteúdo também era provocante no que se refere à palavra. Lembro em especial do Seminário de Metafísica em Autor onde o professor nos desafiou a ler Martin Heidegger. Leitura pesada, difícil, exigente para iniciantes no campo da Filosofia. Daquelas páginas árduas que muito valeram a dor e o sofrimento da leitura, uma das coisas que se gravaram na minha memória, é a descrição heideggeriana de que “a linguagem é a morada do ser”, ou seja, a identificação ontológica entre a linguagem e o ser. Em outras palavras, que a linguagem é o fundamento onde emerge o real.

Se a minha interpretação está correta – dizia-nos o professor que um pensamento sempre tem mais de uma interpretação plausível -, nós, seres humanos, somos aquilo que falamos a respeito de nós mesmos, dos outros e das coisas que nos rodeiam. Não que o nosso falar crie as coisas. Isso seria pretensão exacerbada. Nossa fala dá sentido às coisas e, como a condição humana é constituída pelos sentidos que dizemos, com as palavras desvelamos (para usar outra palavra cara ao pensador alemão) o nosso ser e o ser que damos àquilo que nos rodeia.

As complexas argumentações de Heidegger se tornavam nas aulas compreensíveis com as sábias explicações do professor e para mim se tornaram ainda mais convincentes quando prestei atenção nas palavas de outro pensador. Não era outro metafísico alemão... Trata-se de um judeu contador de histórias e fazedor de milagres que, ao ser interpelado pelos fariseus que o ofendiam com pesados impropérios e palavrões - eles que se consideravam os donos da palavra, não apenas a humana, mas também a divina - retrucou com uma frase contundente: “A boca fala daquilo que o coração está cheio”. Em outra discussão com os mesmos fariseus, voltou à carga: “Tudo o que sai da boca procede do coração”. Se, como nos mostrou o professor Jandir, no pensamento semita, o coração é o centro do ser, entre Heidegger e Jesus há mais proximidade do que aquilo que muitos admitem haver. E ambos nos fazem pensar e compreender as razões da verborragia escatológica presidencial.

Para finalizar, só quero assinalar que Jesus não disse nada de novo. Sua fala brota da ancestral sabedoria humana registrada nos provérbios populares judaicos, essa forma tão doce e forte de dizer as coisas. Apenas para efeito de amostra, no Livro dos Provérbios lemos: “A boca do justo é fonte de vida, mas a violência cobre a boca dos perversos. Os sábios entesouram a sabedoria; mas a boca do tolo o aproxima da ruina”.

Que assim seja, para que todos possamos clamar “Aleluiah”!

P.S.: Professor Jandir João Zanotelli reside atualmente em Pelotas, é Sócio Honorário do Conselho de Reitores das Universidades Brasileiras, Acadêmico – cadeira 46 - da Academia Sul Brasileira de Letras e assessor do Conselho de Reitores das Universidades Brasileiras.

Sobre o autor

Vanildo Luiz Zugno

Frade Menor Capuchinho na Província do Rio Grande do Sul. Graduado em Filosofia (UCPEL - Pelotas), Mestre (Université Catholique de Lyon) e Doutor em Teologia (Faculdades EST - São Leopoldo). Professor na ESTEF - Escola Superior de Teologia e Espiritualidade Franciscana (Porto Alegre)."

 

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