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O perdão liberta a humanidade e a história

Miguel Debiasi

Quase que diariamente o ser humano cria conflitos e desavenças entre pessoas e comunidades. A sociedade constituída de pessoas todos os dias gera intolerância e divisões sociais. Os governos constituídos de pessoas não estão imunes das divisões e tensões políticas. As nações fazem das guerras uma normalidade. Sociedade, governos e nações tendem a gerar conflitos, ódios e guerras o tempo todo. Para romper esse círculo vicioso será preciso do perdão, enquanto ação reparadora da paz e da liberdade.

Santo Agostinho (354-430) é um dos mais importantes bispos, teólogos e filósofos dos primeiros séculos do cristianismo e seu pensamento marcou gerações e continua a influenciar a vida cristã e a reflexão teológica e filosófica. Como sábio atento a todas as questões humanas como de observar um dom especial em sua mãe, Santa Mônica: o de reconciliar as pessoas que se achavam em discórdia, procurando tudo aquilo que as pudesse aproximar uma da outra e reconciliá-las.

O dom reconciliador da mãe foi muito apreciado por Agostinho que em sua obra Confissões, escreve: Concedeste ainda, ó meu Deus de minha misericórdia, um dia, um grande dom à aquela tua fiel serva, em cujo seio me criaste. Sempre que havia discórdia entre pessoas, ela procurava mostrar-se conciliadora, a ponto de nada referir de uma a outra, senão o que poderia levá-las a se reconciliarem.

Na história e na teologia da Igreja, os sacramentos são considerados de suma importância para evangelização e para motivar a vida de comunhão entre as pessoas, comunidades, povos. Entre os sete sacramentos está o da Reconciliação, também denominado de Confissão e Penitência. Todos os nomes desse sacramento apontam para um aspecto importante para a vida cristã. Mas, entre os sacramentos, o da Reconciliação é o mais questionado por membros da Igreja Católica, por outras denominações cristãs e até pelos que não cristãos, escreve o teólogo capuchinho Frei Vanildo Luiz Zugno.

Para muitos católicos, influenciados pela cultura secularizada, o sacramento da Penitência ou da Confissão e Reconciliação “perdeu” sua validade para a vida cristã. De outra parte, é inegável a contribuição teológica do Sacramento da Reconciliação para a prática religiosa e pastoral em nosso contexto. Este sacramento é administrado para superação do pecado ou do mal, experiência que é inerente à condição humana. Tanto sua dimensão teológica quanto prática envolve as realidades humanas: da reconciliação e da paz.

A pessoa ao confessar seus pecados e pedir perdão busca reconciliar-se com Deus, com os irmãos e com todas as criaturas. Toda experiência de reconciliação está para um processo de mudança de vida. Os evangelistas narram que “a multidão toda glorificou a Deus, por ter dado tal poder aos homens”. A prática da reconciliação deve-se a Jesus, que ao curar um paralítico, disse: “Coragem, filho, os teus pecados estão perdoados” (Marcos 2,5-10; Mateus 9,1-8; Lucas 7,48-50). O ministério de perdoar os pecados na Igreja Católica para São Paulo vem de Deus: “Tudo isso vem de Deus, que nos reconciliou consigo por Cristo e nos confiou o ministério da reconciliação” (2 Coríntios 5,18).

No ministério de Jesus o perdão dos pecados é fundamental para realizar o Reino dos Céus. Até na cruz Jesus manifesta necessidade do perdão e o contemplado de sua misericórdia foi um crucificado que temes a Deus lhe suplica: “Jesus, lembra-te de mim, quando vieres com teu reino”. Jesus respondeu: “Em verdade, eu te digo, hoje estarás comigo no Paraíso” (Lucas 23,42-43). Ao ressuscitar Jesus antes de elevar-se aos céus enviou seus discípulos ao mundo com a missão: “Recebei o Espírito Santo. Aqueles a quem perdoardes os pecados ser-lhe-ão perdoados; aqueles aos quais retiverdes ser-lhes-ão retidos” (João 20, 21-23).

A reconciliação é imprescindível para a vida cristã e para a humanidade. Todos os seres humanos precisam fazer a experiência da unidade com todos, superando conflitos, desavenças, ódios, guerras e qualquer divisão social. Ao longo dos séculos, a história da civilização carrega consigo a ideia do perdão. O cristianismo e a Igreja Católica foram decisivos nesse pensamento, largamente difundido a partir dos ensinamentos de Jesus Cristo, o Mestre da evangelização.

Hannah Arendt (1906-1975) é a filósofa política alemã de origem judaica, uma das mais influentes do século XX. O fato de ter sido judia e alemã, ter vivido duas guerras mundiais e perseguida, apresenta uma concepção de perdão deslocado do campo religioso para o campo político. Em sua obra A Condição humana, o perdão como necessidade humana para libertar a história. Para libertar a história de todos os totalitarismos, se quisermos, de todos os apartheids e para preservação da espécie humana.

Na cruz, Jesus pleno da verdade e da misericórdia ensina que o perdão faz parte e torna real o caminho do Reino de Deus, da nova humanidade, plenamente reconciliada com Ele e entre pessoas, comunidades, povos, nações. A filósofa Arendt sentindo na própria pele a dor da perseguição e do ódio, lúcida e sábia prega que o perdão político e social é o início de um novo processo e da oportunidade da reinvenção da humanidade.

Em nosso tempo de tantas guerras e conflitos entre países, de divisão das nações por blocos econômicos, ideológicos, polarização extrema, o perdão político e social revela-se como um recurso de reconciliação e de libertação da humanidade. A não reconciliação entre nações, não avança a história e o bem.

Como cristão e franciscano resta-me torcer para que os bons diplomatas e governantes com suas negociações políticas convençam as autoridades tiranas e opressivas que o caminho seguro para o mundo e para a humanidade é a reconciliação entre nações. E, se isto acontecer teremos uma nova humanidade, uma verdadeira Páscoa.      

 

 

 

Sobre o autor

Miguel Debiasi

Frade da Província dos Capuchinhos do Rio Grande do Sul. Mestre em Filosofia (Universidade do Vale dos Sinos – São Leopoldo/RS). Mestre em Teologia (Pontifícia Universidade Católica do RS - PUC/RS). Doutor em Teologia (Faculdades EST – São Leopoldo/RS).

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