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Ele, o vírus

Gislaine Marins

Em tempo de pandemia, o outro é ele, o Corona. Namoros desfeitos. Casamentos que acabam no hospital. Técnicos que perdem o trabalho. Tudo por culpa dele, o vírus.

O primeiro caso famoso no mundo foi o do cientista inglês que alertou sobre a alta contagiosidade do coronavírus. O Reino Unido, depois de o Primeiro-Ministro ter duvidado da ciência e ter experimentado na pele os efeitos da infecção, decretou o isolamento total. Os cientistas ficaram satisfeitos com a cabeça, mas não com o coração, que, como se sabe, tem razões hormonais. Depois de ter furado o bloqueio, sendo descoberto, o cientista confessou ter traído – a sua tese – para se encontrar com a namorada. Entregou o cargo por coerência e ficou com a namorada – à distância. Para sua sorte, as regras estão um pouco mais flexíveis agora e provavelmente o caso amoroso já não é um tema para debates científicos – e políticos também.

Certamente, a pandemia também causou crises pelo motivo oposto. Sabe-se lá quantos disseram: “escolha: o Corona ou eu” e quem sabe quantos namoros foram desfeitos por causa da distância imposta por lei. Possivelmente, o excesso de presença também deve ter provocado crises sérias entre casais que provavelmente nunca tinham passado tanto tempo juntos – com um vírus no meio, à espreita, pronto para sair de dentro do armário a qualquer momento.

Ultimamente, feita a devida abertura na Europa, estabelecida a distância de segurança, exigida a máscara, o gel desinfetante e o número restrito de convidados – na Itália, são onze no total, incluindo o celebrante – os casamentos voltaram a acontecer. Tudo é respeitado com as devidas promessas: “na saúde, na doença”… Mas ele, o vírus, continua jogando contra. Aconteceu por aqui: traiçoeiramente, depois de verificado que ninguém tinha nada contra a união do casal, descobriu-se que o vírus aproveitou o momento para se intrometer não apenas entre o novo casal, mas contaminando todos os convidados. Literalmente, acabou com a festa.

Esta semana um funcionário da OMS tentou explicar a complexa dinâmica de transmissão do vírus. A partir de qual momento uma pessoa contagiada começa a contaminar os outros? Em que momento o vírus entra em ação e como? Usar luva é mais ou menos perigoso para a propagação do vírus? Ninguém sabe com exatidão. Sabemos apenas que estamos sujeitos ao contágio e não sabemos quando isso irá acabar. Sabemos que a ciência lida com hipóteses, que se confirmam ou se desmentem à medida que os cientistas dispõem de um maior número de dados. Sabemos que o único meio de prevenção eficaz é tentar manter o máximo isolamento possível, limitar os contatos e sermos fiéis à vida. Não vale a pena ter um amante que não tem nenhum compromisso e ameaça tirar o que temos de mais precioso: os nossos afetos e as nossas possibilidades de sobrevivência.

Sim, é difícil escolher entre o trabalho e o vírus, entre as pessoas que amamos e o risco de perdê-las. Parecem duas emergências implacáveis, para as quais não há atalhos, especialmente quando percebemos que o Estado se ausenta do seu dever de proteger os cidadãos na sua integridade física e social. Apesar disso, quero acreditar que pode haver saída na solidariedade e na empatia. Os bons sentimentos, na falta de medidas estatais eficazes, suprem as falhas – e às vezes a determinação – do sistema que deveria proteger os cidadãos. Quero acreditar que ainda é possível contar com a regra da feijoada – “e vamos botar água no feijão” –; aplicar a lei segundo a qual onde comem três, comem quatro; adotar a ordem que nos impõe repartir o nosso pão. Acredito nos jubileus, essa regra milenar que propõe o perdão das dívidas, ou pelo menos o seu adiamento. Haverá um tempo para retomar o trabalho e o pagamento. Agora é o momento de sobreviver e preparar-se para os enormes desafios que nos esperam em breve.

Ele, o vírus, não pode ser o intruso eternamente. Entretanto, a nossa sobrevivência exige um novo patamar de humanidade para que se efetive. Sem solidariedade, sem cuidados, sem confiança, é inútil usar palavras bonitas e fazer promessas vãs. O que desejamos hoje é o embrião da realidade. Sim, que o amor seja eterno e que as nossas palavras sejam sementes: que o vírus seja levado pelo vento e pelas ações concretas que com ousadia podemos realizar.

Sobre o autor

Gislaine Marins

Doutora em Letras, tradutora, professora e mãe. Autora de verbetes para o Pequeno Dicionário de Literatura do Rio Grande do Sul (Ed. Novo Século) e para o Dicionário de Figuras e Mitos Literários das Américas (Editora da Universidade/Tomo Editorial). É autora do blog Palavras Debulhadas, dedicado à divulgação da língua portuguesa.

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