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Desculpem, crianças

Gislaine Marins

Dia de São José: neste 19 de março, em muitos países festeja-se o dia dos pais. De José conhece-se pouco: que era marceneiro e obediente. Acolheu o filho, acolheu a esposa, não polemizou com os anjos, não manchou com o machismo a família que formou.

José, como muitos pais que hoje estão sofrendo de forma inconsolável, também perdeu um filho.

Não se sabe o que José passou pela morte de seu filho, mas é certo que o sentir humano nos inclina à dor, à saudade e ao arrependimento pelas ocasiões perdidas e pelas escolhas equivocadas.

Não há pai que no momento da morte não faça um balanço de seus atos e não entregue ao filho a tarefa de prosseguir, de levar adiante o que de bom foi feito. Não há pai que não peça perdão ao filho pelos erros cometidos. Essa é a ordem natural da vida, quando os filhos enterram seus pais.

Diferente é a situação do pai que sobrevive ao filho e deve carregar na velhice o peso da herança ética que caberia ao futuro dos jovens.

E nós, que os filhos não perdemos, como podemos sobreviver com a culpa coletiva de ter defendido o instrumento de morte e de sofrimento de tantas famílias?

Haverá quem diga que esta não foi a primeira chacina de crianças da nossa história. Sim, há quem relativize a morte e a dor, especialmente quando é alheia. Mas para isso há uma resposta sem conivências de salão e de botequim: as chacinas anteriores foram cometidas por bandidos, a vida de inocentes foi ceifada por assassinos. Hoje também foram assassinos que mataram. Mas ao contrário do passado, agora a sociedade pede armas, pede sangue. E sangue houve. Os assassinos não tinham antecedentes criminais, ao contrário de muitos bandidos das passadas chacinas. Hoje quem pode assassinar e ter porte legal de arma é o cidadão comum, como o pacífico leitor, como o ingênuo defensor das armas, achando que o porte irá defendê-lo da morte, sem imaginar que está dando aval para uma perigosa roleta-russa.

Ao contrário de alguns, que relativizam a morte das vítimas, dizendo que em toda guerra inocentes morrem, que vão para as ruas e para as redes sociais prometendo uma arma para todo cidadão de bem, lamentando o homicídio de crianças inermes com a mesma superficialidade com a qual pregam o armamento de professores como método de defesa, é preciso ter a dignidade de não abdicar de um marco civilizatório que pode nos salvar da barbárie: o ódio se combate com leis, não com a distribuição de armas, o crime se combate com Estado, não com a justiça pelas próprias mãos, a dor se combate com a resistência ao impulso de vingança pessoal. Nenhuma lei que dê a cidadãos comuns armas de fogo poderá reforçar o Estado e as instituições que devem garantir a justiça. A legitimação do uso de armas de fogo não cria apenas o perigoso risco de novas chacinas, mas aumenta vertiginosamente o perigo de enfraquecimento do Estado e da democracia em prol do justicialismo, das milícias, do crime organizado, da vingança, do olho por olho, dente por dente. Em síntese: arma para civis é instrumento de barbárie. Arma nas mãos de civis é conivência com a cultura do sangue e da morte. Arma nas mãos de civis é cumplicidade com o assassinato brutal dos nossos jovens e das nossas crianças.

O que nós, sociedade, diremos hoje aos pais que perderam seus filhos? Devemos pedir perdão. Devemos pedir perdão também às crianças que têm pela frente um futuro funesto, construído pelo nosso desejo, votado e eleito pela maioria. Tenhamos ao menos a dignidade de assumir as nossas culpas e a nossa responsabilidade. Isso não trará de volta os filhos inocentes e não aplacará a dor dos pais, mas é o primeiro passo para transformar a herança que estamos deixando aos filhos que sobreviveram. Sejamos mais José e menos justiceiros. A morte se consola com a serenidade de não ter contribuído nem mesmo com pensamentos e palavras para o derramamento de sangue. Precisamos de paz, não de armas.

Sobre o autor

Gislaine Marins

Doutora em Letras, tradutora, professora e mãe. Autora de verbetes para o Pequeno Dicionário de Literatura do Rio Grande do Sul (Ed. Novo Século) e para o Dicionário de Figuras e Mitos Literários das Américas (Editora da Universidade/Tomo Editorial). É autora do blog Palavras Debulhadas, dedicado à divulgação da língua portuguesa.

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