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Delírio

Gislaine Marins

 

Uma das melhores cenas de "Memórias Póstumas de Brás Cubas" é a do delírio. Como informa o narrador, o episódio durou de vinte a trinta minutos. Machado de Assis, ao contrário do que pode parecer nesse capítulo aparentemente inverossímil, é fiel ao aristotelismo, seja ao indicar o tempo limitado que dura o delírio da personagem, seja na tentativa de investigar, com os recursos de que dispunha na época, o que se passa na mente humana minutos antes do passamento.

Machado de Assis também é realista ao narrar um ciclo de vida e morte, sem deixar escapar os momentos cruciais que determinam a passagem de um estado para o outro. No romance "A Última Tentação de Cristo", de Nikos Kazantzakis, o momento crucial é representado pela tentação que antecede a aceitação da morte. Tema semelhante é apresentado por Spike Lee no filme "A 25° Hora", inspirado no romance de mesmo título, escrito por David Benioff, que também trabalhou no roteiro da versão cinematográfica. Neste caso, a vigésima quinta hora do dia representa a possibilidade da fuga, diante da prisão iminente. O protagonista tem a possibilidade de escapar, imagina a sua vida de fugitivo, mas decide cumprir o mandato de prisão. Vê as diferenças, escolhe e não foge a seu destino.

Em forma de delírio, de tentação ou de hipótese, os momentos cruciais que mudam a nossa vida para sempre são fundamentais, pois permitem que a mudança seja compreendida em toda a sua dimensão. Nada será como antes.

Assim como as pessoas, os países também passam por ciclos e momentos cruciais que assinalam rupturas decisivas. Mas não morrem. Podem decair economica ou politicamente, podem ser destruídos pela guerra, podem ser sufocados por regimes, podem ser isolados por sanções internacionais, mas não morrem. Daí a importância de identificar o momento do delírio, da tentação, a vigésima quinta hora da história. Daí a necessidade de não perder o bonde. Daí a exigência de separar o joio do trigo. Daí o imperativo do discernimento.

O meu desejo nessa Páscoa, nessa passagem que o Brasil atravessa, é que o delírio fique evidente, que a tentação seja reconhecida, que a vigésima quinta hora termine com uma escolha. Mais do que tudo, espero que os brasileiros superem a dicotomia da superficialidade e percebam que farinha do mesmo saco não existe. Uma coisa é uma coisa, outra coisa é outra coisa.

O meu desejo nessa Páscoa é que haja o renascimento da vontade de compreensão, que passa pela educação dos nossos sentidos, da nossa emoção e da nossa forma de analisar os fatos. Passa, por exemplo, pela interpretação adequada de um capítulo indispensável como "O Delírio", sem o qual as "Memórias Póstumas de Brás Cubas" perderia em realismo e em potencial para comunicar ao leitor do futuro as diferenças entre as várias fases da vida e da história. Sem o delírio, perderia sentido a própria ideia de narração a partir do estado de morte e poderíamos ler o romance inteiro como um embuste, como um simples truque para falar da vida. Machado era um realista e quando narra as suas memórias, embora saibamos perfeitamente que o autor estava vivo, sabemos que a intenção é compartilhar a sensação de morte, a percepção da fratura. O objetivo é mostrar que farinha do mesmo saco, vida e morte, antes e depois nunca são e nunca serão iguais.

Sobre o autor

Gislaine Marins

Doutora em Letras, tradutora, professora e mãe. Autora de verbetes para o Pequeno Dicionário de Literatura do Rio Grande do Sul (Ed. Novo Século) e para o Dicionário de Figuras e Mitos Literários das Américas (Editora da Universidade/Tomo Editorial). É autora do blog Palavras Debulhadas, dedicado à divulgação da língua portuguesa.

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