Como a cegueira na lucidez
A literatura ensina que a mentira bem contada é um elixir para enganar os nossos espantos. Ai da literatura que tiver a pretensão de contar a verdade! O que ensina e nos faz pensar é o equívoco. Aprendemos com os erros que percebemos em feições alheias à nossa, embora raramente tenhamos espelhos para enxergar as nossas falhas. Assim, para todo cego existe um Édipo que fura os olhos e nos causa terror, mas não sofre a dor dos que perdem de fato a vista e os direitos diante da nossa indiferença. É que a literatura mente bem e dá muletas para que não sejamos ingênuos por falta de aviso, mas não é emplasto contra a falta de empatia.
Erramos com afinco, pensando que claramente temos razão: não existe desastre sem a perseverança no engano. Se recordássemos vez por outra o drama de Lear, o rei enganado por excelência, entenderíamos que seu amigo tem os olhos arrancados por ter saído do equívoco e, como todo sábio melancólico, enxerga melhor depois de perder a visão física da realidade. Precisamos descobrir outros olhos para ver o mundo. Podemos descobri-los, se não ficarmos limitados ao que parece óbvio, se imaginarmos outros epílogos além do mais provável. A literatura é um método para não ser burro pela vida afora.
A literatura também nos projeta numa meditação infinita. Quando a realidade parece superar a nossa imaginação, a boa literatura lembra que uma folha é uma janela aberta às possibilidades. Livro bom não acaba, ressignifica-se, atualiza-se sem necessidade de upgrade do sistema. Para que isso aconteça basta abrir a mente. Hoje, podemos ler Machado de Assis ou Lima Barreto como se eles tivessem escrito na semana passada. Afinal, quem sonharia que em matéria de escracho das elites políticas alguém competiria com o Conselheiro Aires? Machado nos salva: mostra que apesar de tudo, a ironia não morre, enquanto a gente morre de vergonha pelo revisionismo histórico que nem Numa, nem a Ninfa, nem o homem que falava javanês seriam capazes de revisionar juntos. A literatura apela ao nosso bom senso: há algo no passado que clama por leitura e capacidade de análise. Quando Aires comenta a chegada da República, sabe que não precisa sair à rua: pela balbúrdia percebe que é um governo que sobe. Ou um governo que cai. A complexidade não faz desconto aos desejos revisionistas, só resta entender que nada é plano como a Terra que alguns gostariam de ter.
A cura pela literatura, entretanto, é tão arriscada quanto a psicanálise: de repente, ao ler exemplos que nunca ocorreram, mas que a realidade insiste em fazer acontecer, percebemos os monstros ao nosso redor e os que estão dentro de nós, limitando a nossa humanidade. A literatura é um engano que nos treina para os sustos da vida, mas não nos protege dos seus perigos. A boa ou má sorte que nos cabe, a bondade ou crueldade que nos afeta, não podem ser evitados apenas com a leitura. O que a literatura faz é nos dar a lucidez para os dias sombrios.
Esta semana um estranho apagão deixou às escuras várias ruas de Roma, em vários bairros. Caminhando na penumbra, sob a chuva fina, alguns vendedores nas portas das lojas iluminadas, como faróis do capitalismo, perguntavam em inglês se eu queria comprar algo. Sempre temos cara de estrangeiros, por mais que as sombras confundam as nossas feições, por mais que o tempo acostume os nossos gestos às fisionomias locais. Eu seguia o meu caminho e pensava naquelas lições da infância: como caminhar no escuro, guiada pela luz da lua, que só se reflecte no breu onde há poças d’água. A arte de direccionar o guarda-chuva no sentido oposto ao do vento. Como interpretar o mundo que nos rodeia, tirando lições das histórias ficam na nossa memória. E voltava a me perguntar, como uma adolescente em busca de respostas: então, para que serve a literatura? E dizia a mim mesma: para isso, para este mundo, para esta rua escura, para este outono, para esta vida.
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