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Amor onde quer que flor

Gislaine Marins

Na lágrima de quem chora à distância, impedido pela pandemia de entregar-se à dor e ao abraço derradeiro, está a lembrança da última discussão e da última reconciliação, está a recordação das risadas, das preocupações, dos almoços e dos jantares. Está cada festa de aniversário, cada final de ano e cada Natal. Estão as viagens, as partidas e as voltas. Está a persistência, o afeto, a impaciência. Estão os desencontros e as discordâncias. Estão os projetos, os planos que uniram interesses e os sonhos desfeitos. Está a sabedoria, a espera e a pressa para realizar. Está a preguiça do domingo e a ansiedade das sextas-feiras. Na lágrima de quem se despede nesses tempos de injustiça com os códigos e com a vida, estão as promessas que não se cumpriram e as lutas que não acabam. Estão as traições perdoadas e as ofensas esquecidas. Estão as razões que encontraram o seu lugar e as derrotas acolhidas com humildade. Na despedida, as lágrimas marcam os erros que não foram corrigidos e a saudade dos momentos que não queríamos que acabassem. Estão os dias que vimos surgir e as noites mal dormidas. Estão os calafrios, o medo e os primeiros passos inseguros que nos levam à maturidade. Está o destemor da juventude e a sua leveza. Está o desejo e o enjoo. Está o tédio e a impotência. Estão todas as tentativas, os fracassos e a força para reerguer-se ao final de cada partida.

A lágrima contém o tempo e a síntese. Contém o arrependimento. Contém o desejo de mudança. Contém a resignação. Contém as decisões. Contém a recordação do primeiro beijo. A primeira flor dada à pessoa amada. Contém amor. Contém o elemento essencial da vida.

Chora-se por aquilo que perdemos, mas também por aquilo que ninguém poderá nos tirar. Por isso, a lágrima é melhor do que o sorriso. Podemos até chorar sorrindo, mas nunca rir de tanto chorar. A lágrima revela a nossa descrença e a nossa fé. A lágrima mostra a nossa consciência. A lágrima antecede o gesto. A lágrima assinala as nossas vitórias. A lágrima acompanha os afetos perdidos.

Peço, reivindico, exijo: respeitem as nossas lágrimas! Quem são os poderosos capazes de indiferença diante das lágrimas de uma mãe, de um pai, de um filho, de um irmão? Quem são os banalizadores do sofrimento? Quem são os difamadores dos sentimentos que apelam à nossa humanidade? Quem são os vândalos da nossa dignidade? Quem são os que desprezam a nossa capacidade de sobreviver a todos os revezes que enfrentamos?

Escrevi sobre lágrimas, para que nunca confudam dor com ódio. A lágrima escorre, lava, comove, transforma. Quem chora e sofre sabe que um novo dia é tempo para ser vivido. É vida para ser trilhada. É canteiro a ser cultivado. Da lágrima renasce o amor, onde quer que uma flor possa germinar e anunciar uma nova primavera.

Sobre o autor

Gislaine Marins

Doutora em Letras, tradutora, professora e mãe. Autora de verbetes para o Pequeno Dicionário de Literatura do Rio Grande do Sul (Ed. Novo Século) e para o Dicionário de Figuras e Mitos Literários das Américas (Editora da Universidade/Tomo Editorial). É autora do blog Palavras Debulhadas, dedicado à divulgação da língua portuguesa.

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