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Vermelho tomate, vermelho de sangue

Gislaine Marins

A escravidão não foi inventada no Novo Mundo, assim como o tomate não é um fruto da Europa. Ocorre, no entanto, de as pessoas acreditarem que o Velho Mundo esteja imunizado às formas mais desumanas de exploração do trabalho e que o tomate seja tipicamente italiano. Infelizmente, só quem não lê pode achar que as coisas estão assim.

Parece uma página arrancada do romance A Escrava Isaura, de Bernardo Guimarães, mas é um fenômeno que se descobre praticamente sob o nosso nariz, no coração da Itália: “No fértil e opulento município de Campos dos Goytacazes, à margem do Paraíba, a pouca distância da vila de Campos, havia uma linda e magnífica fazenda”.

Traduzida para a realidade que vivencio, havia uma próspera e virtuosa propriedade rural, em uma das regiões mais férteis da Itália, que faturava mais de um milhão de euros por ano e possuía apenas quatro trabalhadores. Tal eficiência permitiu o acesso a fundos italianos e europeus para o desenvolvimento da agricultura. Entre outras coisas, a propriedade cultivava o suculento e doce tomate, indispensável para a preparação de molhos, saladas, brusquetas, pizzas e outros pratos típicos. Vermelho e apetitoso, vermelho como o sangue.

Em 2008, o horror que se abateu novamente sobre a Itália nos últimos dias já tinha sido descrito na forma e substância pelo jornalista e escritor Alessandro Leogrande no livro Homens e Feitores (Uomini e Caporali, o título original). Existe um verdadeiro sistema de trabalho análogo à escravidão que há décadas mancha a reputação dos produtores agrícolas italianos. A obra desvela tudo: a exploração das pessoas em estado de fragilidade jurídica, pessoas que jamais cometeram um crime e cuja única culpa é serem pobres ou terem fugido dos seus países em busca de uma vida melhor. Uma vez capturadas na rede de exploração, em geral os “patrões” sequestram os seus passaportes, ameaçam denunciá-las para a polícia e impõem condições de trabalho extenuantes, em condições higiênicas desumanas. No ano passado, um trabalhador morreu de insolação, por estar trabalhando sob o sol a pico no verão, totalmente desidratado.

E o que dizer do “salário”? Enquanto o vale-trabalho emitido pelo governo para o pagamento de serviços ocasionais custa dez euros (restando sete euros e cinquenta centavos para o trabalhador, descontados os impostos), o trabalhador irregular ganha cinco euros por hora. Alguém dirá, pensando em reais: “quem me dera ganhar cinco euros por hora”. Mas é suficiente pensar que um quilo de tomates na Itália custa no mínimo sete euros para se ter uma ideia do que significam cinco euros. No Brasil, daria para comprar um quilo de tomates, na Itália, nem isso.

“As aves que aqui gorjeiam”... sim, há algo mais que se pode comparar em termos de salário e que nos diferencia ou iguala: nenhum país pode invocar civilidade quando permite ou promove que pessoas sejam exploradas. A riqueza de um país não se mede apenas pelo acúmulo de capital financeiro, mas pela capacidade de desenvolvimento humano. Por isso, quando se fala da classificação dos países é mais importante avaliar o seu IDH do que a sua renda per capita. A Itália está na vigésima quinta posição em termos de renda e na trigésima posição em termos de desenvolvimento humano. O Brasil encontra-se na septuagésima sexta posição em termos de renda e octogésima nona posição em termos de desenvolvimento. Precisamos melhorar, não há nada do que se orgulhar nessa classificação. O que esses números nos informam? Eles revelam que o oitavo país mais rico do mundo – o Brasil – e o nono – a Itália – possuem um enorme desafio: superar as desigualdades salariais e sociais das suas respectivas populações.

Sim, os números. Mas os dados são frios e precisam ser encarnados para que tenhamos a dimensão da monstruosidade. Para isso servem a literatura e o jornalismo, quando resgatam o valor intrínseco de cada vida humana. Foi o que Leogrande realizou no seu livro, contando a vida desses boias-frias nos campos de plantação de tomates na Itália. Infelizmente, não bastou. Os livros não são suficientes para deter a violência e a ganância, que se revelam na alta taxa de sonegação de impostos e de fraudes para obter recursos estatais. Leitora da obra na sua primeira edição, as suas páginas já tinham ficado impressas na minha memória e o horror narrado já tinha abalado bastante a minha sensibilidade. Foi preciso descobrir um caso ainda mais tenebroso para constatar que a luta dos escritores e dos jornalistas, dos educadores e dos bons políticos, dos funcionários públicos honestos e dos bons cidadãos, é infinita.

Portanto, eis mais um episódio de horror. Um trabalhador do campo, sem contrato, sem visto de permanência, perdeu um braço ao manejar uma máquina na referida propriedade que mencionei no princípio. Morreu, mas poderia ter sobrevivido: bastaria que tivessem feito um garrote e chamado uma ambulância. No entanto, isso não aconteceu: os demais trabalhadores imploraram que fosse prestado socorro, mas o dono da propriedade, temendo ser denunciado pelas inúmeras irregularidades que cometia, decidiu largar o trabalhador na frente da sua casa e deixar à esposa a tarefa de chamar pelo socorro. Uma corrida contra o tempo. Uma morte evitável. Um crime de indiferença imperdoável. Uma exploração inaceitável.

Por isso, é preciso reler A Escrava Isaura. Por isso, o livro de Alessandro Leogrande sobre a exploração no campo na Itália também permanece tristemente atual. Por isso, precisamos estudar sempre a história, não apenas para perceber que o mundo se transforma, mas para constatar que continua o mesmo. E que, por vezes, se repete da pior e mais iníqua maneira.

Sobre o autor

Gislaine Marins

Doutora em Letras, tradutora, professora e mãe. Autora de verbetes para o Pequeno Dicionário de Literatura do Rio Grande do Sul (Ed. Novo Século) e para o Dicionário de Figuras e Mitos Literários das Américas (Editora da Universidade/Tomo Editorial). É autora do blog Palavras Debulhadas, dedicado à divulgação da língua portuguesa.

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