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Relatório

Gislaine Marins

Esta semana tentei escrever esta história de várias formas. É uma história de pequenos grandes gestos, que envolve emoção, dignidade, valores, vida, morte. Tentei escrever recolhendo as emoções que emergiam da experiência. Tentei descever com uma metáfora poética. Ao final, esta quarta versão vai como relatório, porque tudo começa a partir de um ato burocrático. Portanto, burocrática seja a narração.

Na tarde da última terça-feira, uma notícia começa a correr pelos celulares da comunidade escolar. “Soube que o Marco morreu”. Em poucos minutos, os pais recebem a comunicação encaminhada pelos professores: “O atendimento aos pais, previsto para amanhã, será adiado para quinta-feira para permitir que eu participe do velório do Marco”. Outros professores escrevem, informando que estão formando um grupo e que podem acompanhar os alunos que quiserem ir ao funeral. Entre os pais, reina a perplexidade, quem imaginaria que o Marco, auxiliar da escola, homem de meia-idade, sem aparentes problemas de saúde, poderia morrer de forma tão repentina? Uma mãe envia uma mensagem, afirmando que o filho está aos prantos, pois ao sair da escola e se despedir de Marco, como ele fazia com todos os estudantes, o auxiliar disse para eles irem logo almoçar, pois ele estava cansado e não via a hora de ir para casa também. O garoto não imaginava que seria a última vez que daria “tchau” a ele.

Começam a circular os detalhes da organização. Os professores enviam um modelo do texto para os pais autorizarem os docentes a acompanharem os estudantes ao velório. A maioria já está baixando a mensagem ou copiando o conteúdo do documento a ser escrito e assinado. Alguns confirmam que autorizam os filhos a sair da escola, enquanto outros se oferecem para acompanhar os professores e os estudantes. Outros ainda, lamentam não terem tempo suficiente para pedirem uma licença no trabalho. A lei afirma que a dispensa para luto é prevista apenas para parentes até o segundo grau.

Em menos de uma hora recebemos a resposta da diretora. Ela não pode interromper as atividades escolares. É o que diz os regulamentos. Todos os pais do grupo são unânimes em criticar a ordem. Afinal, que tipo de lição dá uma escola que ensina o respeito, a empatia, a convivência da comunidade escolar e que não autoriza os alunos a saírem da escola e os professores a faltarem ao trabalho para participar do velório de um funcionário? Não, não de um funcionário: o velório do Marco. Quem não o conhecia? E qual daqueles garotos não tinha crescido sob os olhos cuidadosos dele? “Bom dia” na entrada e “boa tarde” na saída. Justificativa se entrava atrasado. Explicação por escrito se faltava à aula. Telefonemas aos pais. “Ele está chorando”. “Está com dor de barriga”. “Dor de ouvido”. “Febre”. “Aguardamos até que venham buscar”. “Não, nenhuma criança fica sozinha na portaria”. Como é possível obedecer às normas gerais diante da morte de um membro da própria comunidade? Onde está a responsabilidade do gestor para salientar a importância de pôr em prática os nobres sentimentos que a escola tenta transmitir aos alunos?

Enquanto os adultos discutiam como violar a regra mencionada para desencorajar a participação dos professores e dos estudantes no velório, em outro grupo uma decisão já tinha sido tomada: “Vamos faltar à aula, com ou sem a autorização da diretora”. Um dos pais, avisado pelo filho, informa aos adultos: “eles já estão se organizando! Disseram que vão faltar à aula!” Mais uma vez por unanimidade, mas desta vez tomado pela emoção, o grupo de pais comunicou a decisão dos filhos aos professores, orgulhosos por eles fazerem algo que em circunstâncias normais seria criticado por todos. “Venceram a indiferença!”, comentou um. “Apesar das dificuldades da idade, mostraram que amadureceram”, escreveu outro. “Os professores conseguiram transmitir valores essenciais, estou contente”, compartilhou outro.

Marcaram o encontro na parada do ônibus que levada ao local do velório, comportaram-se bem, preocuparam-se em usar uma roupa sóbria. Pela primeira vez, tomaram uma decisão sozinhos, agiram sem os pais, contra a direção escolar. No dia seguinte, como exigem as normas, levaram a caderneta escolar com uma motivação assinada pelos pais: “falta por motivo familiar”. Sabiam que era mentira. Faltaram por causa do Marco, para dar o último adeus. Faltaram porque cresceram. Faltaram porque é justo contrariar a lei e fazer valer a justiça. Faltaram porque o errado às vezes é a coisa certa. Estão prontos. Marco, fique em paz, eles chegaram onde todos esperavam que chegassem. Pena que tenhamos descoberto isso da maneira mais triste, sem você por aqui para ver e sorrir. Nada mais a relatar.

Sobre o autor

Gislaine Marins

Doutora em Letras, tradutora, professora e mãe. Autora de verbetes para o Pequeno Dicionário de Literatura do Rio Grande do Sul (Ed. Novo Século) e para o Dicionário de Figuras e Mitos Literários das Américas (Editora da Universidade/Tomo Editorial). É autora do blog Palavras Debulhadas, dedicado à divulgação da língua portuguesa.

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