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Para ler em voz alta

Gislaine Marins

A internet terceirizou a nossa capacidade de falar na cara. Gritamos com letras maiúsculas. Rompemos as barreiras do protocolo e insultamos autoridades como se falássemos com o cachorro. Há autoridades com pouca respeitabilidade, mas não por isso a língua precisa se transformar em latido. A internet desmaterializou o nosso corpo: desejar que o outro morra virou exercício de abstração. Tudo seria asséptico, se o que dizemos e clicamos não tivesse efeito na vida real. Se o ódio nas nossas palavras não se transformasse em facadas. Se o voto não se transformasse em políticas que afetam diretamente as nossas vidas.

Há várias coisas no discurso político do ódio que não podem ser aceitas, considerando que o Brasil é signatário da Declaração Universal dos Direitos Humanos da ONU, da qual também é membro. Ou seja, pode-se discordar de políticas econômicas, mas nem todas as políticas econômicas ferem os direitos humanos fundamentais. Posde-se perceber a importância do combate à corrupção, mas isso não pode autorizar nenhum político a passar por cima dos direitos fundamentais do homem. Ao final das contas, a escolha poderia ser determinada por esse critério: eu estou votando para o Brasil continuar sendo um país reconhecido internacionalmente ou estou votando à revelia dos princípios necessários para que o nosso país não seja alvo de sanções internacionais?

Proponho que os leitores leiam em voz alta, diante dos familiares, as frases que escrevo a seguir. Trata-se de um exercício que elimina a abstração, tão comum nas nossas vidas, quando queremos tomar decisões que na realidade contrariam os nossos princípios pessoais, mas que escolhemos quando negamos que eles possam ter repercussão sobre as nossas vidas e sobre a vida das pessoas que nós amamos.

- Eu vou expulsar você desta casa, meu filho! Quem não me obedecer vai para fora ou para a rua! – diga isso olhando para o seu filho, especialmente se ele disser que gosta de um gênero de filme diferente do seu. Perceba que a maioria dos horrores não ocorrem por grandes divergências ou por posições fundamentadas, mas por futilidades. Esses são os números da violência. Portanto, não se justifique. Use de ódio sem buscar uma boa razão para isso, é assim que funciona o mecanismo desse sentimento: na falta de racionalidade.

- Está com um tumor? Problema seu! Eu não trabalho para gastar nesse tipo de tratamento! É muito caro. Junte dinheiro, minha filha, e vá se tratar às suas custas, não às minhas! – diga olhando para a sua filha, sem piedade.

- Acho que bateram pouco em você na escola, deviam ter batido mais! O erro foi terem batido e não terem matado você, meu filho. – diga olhando nos olhos do seu filho.

- Só não te estupraram porque você não merece, minha filha! Mas deviam: você merecia isso! – diga com convicção, com o mesmo ódio que as pessoas dirigem abstratamente a pessoas que não conhecem e observe qual o feito isso provoca em sua filha.

- Olha como você é gorda! Feia! Eu sou muito mais bonita! Quantas arrobas você pesa, filhinha? – diga apontando o dedo para a sua filha, olhando de cima para baixo, humilhando.

- Eu não te eduquei para ser gay! Se eu te pegar na rua beijando outro, eu te espanco! Eu acabo contigo! – diga com muita raiva, mirando no seu filho, mesmo que ele não seja gay, pois as pessoas são agredidas apenas pela sua aparência, não por quem elas são.

Sobre o autor

Gislaine Marins

Doutora em Letras, tradutora, professora e mãe. Autora de verbetes para o Pequeno Dicionário de Literatura do Rio Grande do Sul (Ed. Novo Século) e para o Dicionário de Figuras e Mitos Literários das Américas (Editora da Universidade/Tomo Editorial). É autora do blog Palavras Debulhadas, dedicado à divulgação da língua portuguesa.

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