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Ode à inutilidade

Gislaine Marins

Acabou o Carnaval, festa curta e necessária para ver a vida pelo avesso e observar com outros olhos a realidade. Foram-se os dias em que cada um pode se colocar em outro lugar, diferente daquele em que está normalmente, por brincadeira ou por um secreto sonho. Foi-se o tempo da inutilidade. Resta-nos o tempo da beleza.

A beleza é tão necessária quanto inútil. Existe, encanta e recorda a todo momento que a sua função é não ter função. Por não ter função alguma, a beleza pertence à dimensão da liberdade: apreciá-la nos ensina a ser livres. Compreender o significado da beleza ajuda a suportar a esfera utilitária à qual o nosso cotidiano permanece atrelado, com as injustiças da vida real: a luta pela sobrevivência, as disputas pessoais, as ilusões e os desenganos. Ao fim de cada jornada, extenuante ou deprimente, revoltante ou ilusoriamente compensadora, é a beleza que nos permite ver além dos nossos limites: que podemos ser quem somos, não apenas pela utilidade que temos no mundo.

Olhar para nós e ver: por alguns momentos do nosso dia podemos ser inutilmente belos. Podemos nos reapropriar da liberdade de não ter nenhuma função específica, mas simplesmente de viver, dignificando esse milagre que é respirar, pensar, correr, dormir e voltar a acordar. A vida por si só é algo tão fantástico que somente mentes insanas podem ter inventado que o sentido da nossa existência está naquilo que produzimos, no quanto produzimos, no quanto podemos acumular produzindo e no quanto podemos economizar fazendo os outros produzirem.

É claro que trabalhar é preciso e necessário. Mas viver não é preciso, como já disseram tantos, desde a antiguidade, passando por Fernando Pessoa e Caetano Veloso no século mais próximo de nós. Viver é mais: viver é uma beleza.

Na minha rua cortaram muitas árvores para abrirem os canais de fibra ótica e por anos fiquei muito indignada por isso. Um cabo de telefone não vale tamanho desprezo. O estranho é que em alguns casos, não arrancaram as raízes, mas cortaram o tronco, deixando os tocos como um monumento da indiferença, além dos canteiros vazios. Passaram-se mais de dez anos e um dos tocos, com as suas raízes impertinentes, resolveu lançar quatro brotos, que foram crescendo, formando quatro troncos, com uma copa quadruplicada: sejamos sementes. Ou troncos que não se resignam ao corte.

Viver: é ver que nisso não existe nenhuma utilidade, além de a árvore me deixar feliz e vingada. Eu também poderia dizer que essa contemplação é uma aprendizagem da beleza.

Há muitas outras belezas na vida: na arte, na paisagem, na literatura, na cozinha, no cinema, na dança. A beleza tem muitas faces diferentes e às vezes enigmáticas. A gente vai decifrando aos poucos, com os instrumentos do conhecimento, da intuição e da emoção. E quando colocamos tudo isso em movimento, a beleza revela algo sobre nós mesmos: sobre a nossa capacidade de saber ver a beleza e, vendo-a, materializá-la. A beleza não existe sem os nossos olhos, sem a nossa particular forma de observar. A beleza e nós: entrelaçados e ilimitados, pois não nascemos para ter utilidades definidas.

O Carnaval acabou mesmo, entramos em um período de reflexão. Tempo bom para pensar na vida, nos seus percursos e percalços: a morte, que para todos chega, é um acúmulo de vida. Se a vida não pode ser sempre bela, poética, lírica, não seja conformada àquilo que é útil e necessário. Nem seja precisa, para não trair a sua essência: que nos surpreende, nos emociona, nos esperança (do verbo esperançar), nos encanta e, no fim das contas, nos embeleza e nos mostra que vale mais a pena por aquilo que não tem nenhuma utilidade. A vida vale pela beleza que é.

 

Sobre o autor

Gislaine Marins

Doutora em Letras, tradutora, professora e mãe. Autora de verbetes para o Pequeno Dicionário de Literatura do Rio Grande do Sul (Ed. Novo Século) e para o Dicionário de Figuras e Mitos Literários das Américas (Editora da Universidade/Tomo Editorial). É autora do blog Palavras Debulhadas, dedicado à divulgação da língua portuguesa.

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