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O grito

Gislaine Marins


Relato técnico totalmente desprovido de ideologia:
Declaração: os profissionais de saúde prestaram a melhor assistência médica à disposição, mas o bebê de cinco meses não resistiu. Foi declarado clinicamente morto.
Enquanto o mundo cristão se preparava para festejar o nascimento do Menino e a Sagrada Família, em uma pequena cidade no norte da Itália um bebê de cinco meses expirava e jogava sua mãe no mais completo desespero.


Fato: diante do quadro irremediável, a mulher soltou um grito visceral, irracional, incontido. Uma morte tão prematura requer lágrimas de uma vida inteira: da escola que não frequentará, das primaveras que não verá, do amor que não encontrará, das alegrias que não vivenciará, das desilusões que não terá, dos desafios que não vencerá, da maturidade que não alcançará, dos pais por quem não chorar no momento derradeiro. Um grito que valia uma vida inteira.


Fato: a dor alheia não foi bem recebida por quem estava no hospital e acredita que o sofrimento está sujeito a medidas e comedimentos. Deve ser bem comportado e respeitar a tranquilidade do ambiente. Deve seguir as regras de etiqueta e boas maneiras. Quem sabe, a vítima da dor deve desculpar-se: "lamento pelo inconveniente, meu filho acabou de morrer. Espero que meu pranto não fira a vossa indiferença".


Fato: uma política italiana, ao saber do caso, não hesitou em demonstrar solidariedade à mãe adolorada. Porém, o que prevaleceu em seu gesto foi a empatia materna, não o pertencimento partidário. Os seus correligionários não desculparam o comportamento: exigiram coerência política, que, para a formação partidária em questão, requer que os italianos estejam sempre em primeiro lugar.


Detalhe: a mãe é nigeriana. A dor, nessa escala de valores, assim como a maternidade, vem depois da nacionalidade.
Fato: o grito, que não pode restituir a vida, pode, no entanto, despertar a empatia, para além das posições políticas. A política que demonstrou solidariedade dividiu o  partido com o seu posicionamento,  porém mostrou que a dignidade não é prerrogativa da política, mas uma necessidade humana. Revelou, contudo, que a humanidade não é uma qualidade óbvia. Na maioria das vezes, o que usamos é um artigo de circunstância, útil para ser exercido publicamente, geralmente em benefício próprio: mera hipocrisia. No contexto prosaico, quando nos sentimos seguros pelo anonimato, a intolerância predomina sem pudor. Em grupo, somos tentados a aderir à maioria ignorante que reclama aparentes bons modos.


Perguntas: é possível ser mãe, empática, e continuar a professar a política da intolerância? Esta política conseguirá domar os seus eleitores e alterar a ordem de valores que defendem? O que irá predominar na sociedade que se aproxima da segunda década do século XXI: a empatia, a tolerância ou a hipocrisia? Quantos gritos ouviremos e quantas mortes serão necessárias para darmos as respostas certas e adotar os comportamentos aceitáveis para um mundo civilizado?  

 

 

 

Sobre o autor

Gislaine Marins

Doutora em Letras, tradutora, professora e mãe. Autora de verbetes para o Pequeno Dicionário de Literatura do Rio Grande do Sul (Ed. Novo Século) e para o Dicionário de Figuras e Mitos Literários das Américas (Editora da Universidade/Tomo Editorial). É autora do blog Palavras Debulhadas, dedicado à divulgação da língua portuguesa.

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