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Milão, Miró, Ubusonaro

Gislaine Marins

No último Natal, a Milão fria, chuvosa e às vezes coberta por uma leve camada de neve deu lugar a uma primavera espantosa, solar: vinte e um graus nos momentos mais quentes do dia e o convite para estar na rua, curtindo a pista de gelo artificial e as árvores natalícias tecnológicas, que tanto destoam da tradição e ao mesmo tempo fascinam a velha Itália das ruínas monumentais.

Ir para Milão é como sair do país, permanecendo profundamente italiano. O novo conserva algo arcaico, que explode na boca dos seus artistas mais genuínos e, por isso mesmo, universais: de Manzoni a Dario Fo, há uma galeria humana narrada e encenada, que nos amedronta e às vezes nos faz rir diante da nossa impotência para evitar que o mal se instale nos melhores lugares da sociedade, exercendo o poder de forma brutal, incontrolável como as nossas entranhas. Estava caminhando sem rumo pelo centro de Milão, buscando me perder naquela geografia plana tão diferente de Roma, quando me deparei com Miró e a sua ameaçadoraescultura da Mãe Ubu, para que nunca esqueçamos o horror das tiranias. 

Como opositor do regime de Franco, a figura de Ubu é recorrente na obra do artista. Miró chegou a fazer uma trilogia dedicada à personagem criada por Alfred Jarry, percursor do teatro do absurdo. Contudo, o momento mais dramático dessa relação de Miró com Ubu se dá com a realização de um espetáculo completo, no âmbito de uma encenação experimental, denominado Morí el Merma, no qual o artista recria Ubu rei à luz da morte de Francisco Franco. Durante cerca de quarenta anos a monstruosidade da ditadura acompanhara a obra e as obsessões de Miró. 

Miró não foi o único a ser capturado pela figura grotesca do ditador ignorante, grosseiro, covarde, inescrupuloso e arrogante. Sempre atual – porque o horror nunca passa –, Ubu pode apenas ser esquecido por alguns momentos, quando somos iludidos por uma primavera inesperada, por um instante de felicidade, por uma alegria inexplicável de viver, e deixamos armazenados no subconsciente os nossos temores e a certeza de que o mal voltará a emergir. Se para Miró Ubu foi Franco, na versão original era o antigo rei de Aragão, capitão de Dragões e oficial da confiança de Venceslau, o soberano da Polônia que será assassinado por ele, em sua escalada frustrada para deter o poder. No entanto, Ubu recebeu encenações como Ubush, e foi objeto de um monólogo no qual Dario Fo aproxima-o da figura de Belusconi. Em 2017, foi associado a Trump, numa encenação portuguesa. Em Portugal, Ubu já tinha sido também uma alusão a Salazar. O original, por sua vez, faz eco à tragédia de Shakespeare, Macbeth, na qual a ambiciosa esposa, como Mãe Ubu, sugere que o marido assassine o rei e usurpe a sua coroa.

Essas evocações mostram que a arte é capaz de interromper o nosso isolamento e de sugerir viagens impossíveis. Posso voltar ao tempo que não vivi, aos lugares que visitei e que agora não posso rever, às lembranças da infância, quando pela primeira vez fiquei hipnotizada por uma imagem ligada ao futebol: era o logo da Copa de Mundo de 1982, criado por Miró, que eu não sabia quem era. Sabia e acompanhei, minuto a minuto, a nossa derrota triunfal, com o melhor time de todos os tempos, para a Itália, que até hoje recorda a façanha sobre a nossa seleção e o título mundial alcançado em terra espanhola.

Só mais tarde descobri o artista catalão e a sua arte surrealista que, diante de uma realidade cada vez mais absurda, adquire contornos de engajamento insuspeitáveis à primeira vista. Miró, como todo grande artista, é inseparável das suas obras. Fazia emergir as cores do subconsciente e das entranhas, refutava a representação explícita da realidade, que não podia ser apenas exterior. Para entender os laços entre as obras de Miró e o período de opressão que o seu país e o mundo atravessaram ao longo do século vinte, é necessário deixar-se envolver pelas sugestões oníricas do seu trabalho, que apresentam um lado fragmentado, em estado bruto e primordial, da experiência vivida. Contemplar a sua obra é uma oportunidade para ver as cores e as formas esperneando contra um mundo de dominação, censura, controle. A arte é o espaço da liberdade e um campo de batalha onde podemos desafiaros nossos ubus, independentemente do nome que tenham, independentemente do ubosonaro que sejam. A arte é também um aviso: morto um rei, um novo ubu é coroado. 

A arte é infinita, porque o mal nunca acaba. A arte é humana porque não cansamos de transformar o viver em patafísica, que o autor de Ubu rei definia como a ciência das soluções imaginárias. Para todo mal que se abate sobre o mundo, a arte é a capacidade humana de resistir com criatividade, com a força inaugural das coisas que ainda não foram pensadas, com a coragem dos sistemas desarticulados e impermeáveis às lógicas que organizam e aprisionam. Em breve enfrentaremos uma nova onda de doença, crise econômica e mudanças políticas. Ubus de todas as latitudes promovem cenas grotescas. O clima tornou-se incontrolável e o poder parece insaciável. 

A arte é cada vez mais necessária para sobreviver, para enfrentar os dias frios e para alegrar as nossas primaveras tão efêmeras quanto inesperadas.

Sobre o autor

Gislaine Marins

Doutora em Letras, tradutora, professora e mãe. Autora de verbetes para o Pequeno Dicionário de Literatura do Rio Grande do Sul (Ed. Novo Século) e para o Dicionário de Figuras e Mitos Literários das Américas (Editora da Universidade/Tomo Editorial). É autora do blog Palavras Debulhadas, dedicado à divulgação da língua portuguesa.

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