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Maria e o messianismo

Gislaine Marins

 

Faz meses que queria escrever sobre Maria, mas falta uma semana para o Natal e o messianismo, essa doença que contagia a nossa cultura, estava entre os temas que mais me interessavam no momento.

Faz tempo que queria falar sobre Maria, ela sabe disso porque escrevi e perguntei se poderia contar a sua história. Mas o ano passa em um instante, entre mil assuntos urgentes, e a delicadeza de Maria fica em segundo plano, a sensibilidade de Maria fica para depois, a crítica repleta de confiança na mudança tem a paciência de Maria.

Então chegou o Natal e eu queria falar do messianismo, este mal que nos aflige, enquanto alimentava uma certa culpa por uma promessa não cumprida. Promessa, a gente sabe, é a única coisa que a gente deseja destruir para que aconteça. Messianismo é a enfermidade dos que fazem da promessa uma tortura, uma vã esperança. Maria estava mais uma vez na fila, esperando para outra vez.

E por que falar de Maria? Afinal nem nos conhecemos. Quando recebi a sua primeira mensagem, com tom amistoso, tive dúvida. Ela soube tocar a minha desconfiança e a minha vaidade. Disse que gostava de ler o que escrevia e venceu as minhas cautelas. Fui olhar o que ela escrevia e também gostei. Assim começou a nossa correspondência fluida, feita de silêncios e reflexões à distância, entre mundos quase incomunicáveis. Maria escrevia sobre uma Sicília intensa, pobre e cheia de dignidade, empática, acolhedora, a Sicília que recebe imigrantes e compartilha com eles as pequenas alegrias de uma terra que não cansa de sonhar dias melhores e menos violentos. Contava a dignidade dos imigrantes que, nessa terra feita somente de mafiosos aos olhos do mundo que não a conhece, atravessam a ilha preocupados em pagar o bilhete de passagem.

Acompanhei à distância a mudança de Maria para o norte da Itália e como as pessoas carregam a terra dentro da alma onde quer que estejam. Quem espera o retorno do Messias deveria lembrar que o Menino voltará com os olhos cheios de crianças perseguidas e mortas pelo ódio de governantes, pelas bombas que jogam sobre suas casas e pela fome que as definha para melhor governarem. Eu queria falar sobre o messianismo que estudamos na escola e que explica que, entre nós, esperamos um salvador da pátria, o homem forte, que nos isenta de todas as responsabilidades. Essa é a nossa doença. Quem espera o Messias sabe que tem livre arbítrio e que é eternamente responsável por aquilo que cativa. Se for salvo, é pela graça, não pelo mérito.

Esta semana, Maria explicou o messianismo sem jamais usar essa palavra, que talvez não ressoe na cultura siciliana como está entranhada em nós. Ela contou que cresceu na periferia. Quem imagina que a Sicília é uma periferia esquecida pelos italianos, pode imaginar o que seja a periferia da Sicília? Ela escreve: um lugar onde faltava tudo. “A escola ficava em um apartamento, sobre um açougue, uma padaria e um bar. Até hoje o nosso bairro está cheio de cachorros e gatos nas ruas. Os canteiros não são cuidados e a água é distribuída uma vez por semana. Antes distribuíam a cada quinze dias. Para mim é o lugar mais bonito do mundo, mas nunca neguei que objetivamente é degradado. De quem é a culpa? Dos moradores? Também. Dos administradores locais? Idem. Mas estou absolutamente convencida de que há uma clara e específica vontade do Estado em querer esfomear o sul. Se você esfomeia um povo, pode tê-lo em mãos. É científico. E é triste de enlouquecer”.

Essa doença que nos enlouquece não deixa de ver o mal que nos rodeia, mas não perde a esperança impotente. O Menino que festejamos a cada Natal não pediu que desejássemos o mal para nós mesmos a fim de justificar a nossa salvação. Isso é messianismo, conceito que faz parte da cultura e não da religião. O Menino festejado a cada Natal nasceu em uma estrabaria, era pobre, foi perseguido, teve de migrar com a sua família, contestou o poder e acabou condenado à morte. O seu foi um exemplo de dignidade do início ao fim. O messianismo é o contrário disso tudo, é uma perversidade na qual os pobres e os perseguidos exercem o papel vítimas e facilitam o jogo do poder que não lhes dará nenhuma redenção, apenas confirma que no terreno de forças o mais forte vence e o mais fraco perde, matematicamente.

O Natal não é nada disso: a esperança não é um sentimento inerte, mas uma mensagem. Como tal, deve ser atenta e transformadora. A esperança deve ser exemplar: o significado do Natal sem messianismo é ver a realidade com os olhos de Maria, capaz de sentir empatia, de recordar a dor e de agir para que a relação entre explorados e exploradores não seja um simples dado de fato, mas um motivo para fazer as batalhas mais bonitas da vida: aquelas que transformam o mundo em um lugar melhor para todos e não somente para alguns.

Sobre o autor

Gislaine Marins

Doutora em Letras, tradutora, professora e mãe. Autora de verbetes para o Pequeno Dicionário de Literatura do Rio Grande do Sul (Ed. Novo Século) e para o Dicionário de Figuras e Mitos Literários das Américas (Editora da Universidade/Tomo Editorial). É autora do blog Palavras Debulhadas, dedicado à divulgação da língua portuguesa.

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