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Mais uma cova

Gislaine Marins


O ano novo é uma cova que abrimos para fechar doze meses depois. Às vezes, transforma-se em abismo, buraco sem fundo, com o qual não sabemos lidar. Se soubéssemos, poderíamos transformar precipícios em plataforma de voo. Teríamos que aprender a engenharia das asas e as técnicas do paraquedismo.
No entanto, o ano novo pode ser uma simples cova rasa, onde depositamos coisas que gostaríamos de esquecer, mas que a primeira chuva pode fazer aflorar novamente. São como amores mal resolvidos, que abrem brechas no coração, fazendo rolar as nossas lágrimas e desmanchando a maquiagem. Um buraco na medida certa, contudo, é capaz de receber os restos da nossa abundância, incluse os nossos bons sentimentos, desperdiçados em batalhas vãs, para nos restituir o húmus que nutre a terra e gera nova vida.
Ano novo é sempre uma cova que vamos abrindo para enterrar o que desejamos, ainda que por vezes o desejo seja secreto para nós mesmos. É um perigo, porque desejos se realizam: e as suas consequências, inevitavelmente, acompanham tudo aquilo que se concretiza.
E por que uma cova, e não um balão que sobe e flutua no ar? Porque o tempo não estoura como bolhas de sabão, não é feito de sopros e espuma, nem de borracha suscetível a espinhos e alfinetes. O tempo é pesado como chumbo, desce com a força da gravidade arrastando o seu peso sobre nós. Ao final de cada ano, podemos enterrar aquilo que se tornou tóxico. Podemos cobrir aquilo que pode ser adubo. Podemos esconder aquilo que para nós é tesouro.
Ano novo é cova. Cabe a cada um escolher o que fazer com o buraco que temos pela frente, que dimensão queremos dar a ele e o que queremos colocar dentro. Também nos compete eleger o que queremos que cresça sobre a terra, quem sabe com o nutrimento do que restou do passado. O que queremos salvar da passagem inexorável do tempo. Pode ser uma flor que regamos, uma amizade que conservamos, um amor que perdoamos, uma ideia que seguimos, um sonho que realizamos. O tempo é generoso e possui essa duplicidade: enquanto morre, exalta o que vive e nos faz respirar.
Há tempos que são difíceis. Ao nosso redor tudo parece ser mais do mesmo, mas um segundo jamais é igual ao que virá. Tempo é fluxo. Pode nos carregar como ventania ou como um desabamento montanha abaixo, ou pode parecer uma escalada impossível. Raras são as vezes que podemos caminhar por vales e planícies. Ao final das contas, olhamos para trás e o que vemos é uma trilha, com covas, cruzes, abismos, canteiros, tudo o que foi ficando ao longo do nosso caminho. E assim, começamos a abrir uma nova cova.  

Sobre o autor

Gislaine Marins

Doutora em Letras, tradutora, professora e mãe. Autora de verbetes para o Pequeno Dicionário de Literatura do Rio Grande do Sul (Ed. Novo Século) e para o Dicionário de Figuras e Mitos Literários das Américas (Editora da Universidade/Tomo Editorial). É autora do blog Palavras Debulhadas, dedicado à divulgação da língua portuguesa.

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