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Irreconhecíveis

Gislaine Marins

A morte vive entre nós. Circula sem ser reconhecida e sem nos reconhecer. Mas não é preciso incomodar uma figura tão assustadora para evidenciar o problema que nos acomete hoje: nós não reconhecemos os amigos e nos casos piores não reconhecemos a nós mesmos. Talvez a vida toda seja a encenação de uma tentativa de identificação do desconhecido que vive dentro de nós, dos desconhecidos com os quais convivemos, dos desconhecidos que elegemos, dos desconhecidos a quem obedecemos, dos desconhecidos que não queremos encontrar. Porque fugir do conhecimento é uma forma de sobreviver, de não ter que pensar e escolher. É uma forma cômoda de ser vítima de si mesmo e do mundo. Enquanto representamos o nosso papel, a morte só nos pega por equívoco, achando que somos outra coisa, que de fato somos.

 

Eu imagino a morte batendo à porta de uma pessoa vaidosa:

- Bom dia, vim buscar você.

- Como, eu? Por quê?

- A vaidade matou a sua reputação, estragou você por dentro.

- Mas eu não sou vaidosa! Eu sou a pessoa mais generosa, mais caridosa do mundo!

- E você gosta de ser assim?

- Claro, ajudar as pessoas é um privilégio! Precisa ver o olhar de agradecimento nos olhos das pessoas que recebem uma ajuda minha. Nada a ver com o medo que teriam ao deparar-se com a morte batendo à porta delas, como você está fazendo comigo. Não é justo ser levada da vida por um sentimento que não possuo!

- Você é quase irreconhecível. Acertei porque não me deixei enganar pelo véu de caridade que você exterioriza. Mas, pelo jeito, você não se reconhece, não é?

- Talvez possamos chegar a um acordo…

- Quer outra chance?

 

Todo mundo quer outra chance. Só que a vida não apaga os vestígios que deixamos ao longo do nosso percurso. Dá para consertar, dá para não errar do mesmo jeito, mas para se reconhecer é necessário lembrar. E não basta pedir desculpas, é preciso mudar o comportamento, tornar-se irreconhecível diante daqueles que nos conheciam até o dia anterior, tornar-se invisível para a morte e renovar-se diante do espelho. Ser diferente daquilo que se via antes e entender o que constitui a nossa essência.

 

Tudo isso ainda não basta, pois os rastros deixam provas dos nossos erros. A gente não consegue escapar do passado sem pagar todas as contas que ficaram penduradas. A vida não vende fiado. O sentido de “pós”, depende de “pré”, “depois” só tem sentido porque existe “antes”, “novo” só pode ser concebido diante da ideia de “ultrapassado”.

 

Imagino a morte batendo à porta de um comentarista:

- Largue o que está fazendo e venha comigo.

- Com qual propósito? Quem é você?

- Eu sou o fascista…

- Ah! Ah! Ah! Ontem mesmo eu afirmei durante um programa televisivo que não podemos mais usar esse termo. De fato, o fascismo é um período bem delimitado na história. Podemos falar de extrema-direita…

- Eu sou a morte!

- Ah, agora é outra coisa… E o que você quer de mim, morte?

 

É claro que tal diálogo seria impossível, pois quem nega que o pensamento fascista atual seja herança do fascismo do século XX não poderia admitir que a morte seja resultado da vida. Os negacionismos, em geral, assim como a ideia de que fenômenos possam ser delimitados, sem produzir consequências nem ser originados de outra fonte, estão fadados a alimentar as ilusões dos irreconhecíveis. De resto, os irreconhecíveis são o que são porque não reconhecem: são, para usar um neologismo, irreconhecedores.

 

Compreender o perigo dessa postura no nosso dia-a-dia é urgente. Não reconhecemos mais uns aos outros. Imaginamos que o voto de quatro anos atrás pode não ter relação com o que iremos fazer daqui a duas semanas. Supomos que quem nega a vida pode ao mesmo tempo negar a morte, podemos achar que vaidosos chantageadores possam ser ao mesmo tempo caridosos, que racistas possam ter amigos negros, que feministas possam ser submissas e, no fim das contas, que bandidos possam ser bons pais de família. Acreditamos, no fundo, que podemos ser Dr. Jekyll de dia e o monstruoso Mister Hyde de noite. Na literatura funciona, na psicologia pode ser uma metáfora eficaz, mas na vida costuma causar percepções distorcidas dos fatos, comportamentos incoerentes e concepções equivocadas. Pior de tudo: os irreconhecíveis são um perigo para si mesmos e para os outros. Nem precisa que a morte nos reconheça para que a tragédia se assole sobre nós. Hoje basta uma palavra, uma camiseta para virar alvo dos outros, daqueles que a gente julgava serem iguais a nós: pessoas boas, de bem. Mas não: são irreconhecíveis. Circulam sem serem reconhecidos e sem nos reconhecer. Vivem entre nós. Votam como nós. Polemizam como nós. Destroem como só eles sabem fazer.

Sobre o autor

Gislaine Marins

Doutora em Letras, tradutora, professora e mãe. Autora de verbetes para o Pequeno Dicionário de Literatura do Rio Grande do Sul (Ed. Novo Século) e para o Dicionário de Figuras e Mitos Literários das Américas (Editora da Universidade/Tomo Editorial). É autora do blog Palavras Debulhadas, dedicado à divulgação da língua portuguesa.

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