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Inércia em Roma

Gislaine Marins

No mesmo barco: melhor seria dizer: no mesmo ônibus. Em Porto Alegre, a náusea emergia no transporte - público. E não era por causa do suor. Suor é realidade. Suor é trabalho. Suor é exploração. Suor é o nosso corpo sem espaço para as etiquetas e sem dinheiro para o perfume. O enjoo subia pelo nariz de raiva e impotência. Centenas de vezes a mesma cena. Cinco dias por semana. Nove meses por ano. A era linha da condução que passava perto da minha casa. Era a mesma que trazia ao final do dia os trabalhadores da construção rumo à periferia norte da cidade.

No mesmo ônibus, cumpríamos os mesmos gestos. As mãos firmes para as curvas e as freadas. As cabeças balançando no mesmo ritmo dos buracos no asfalto. Efeito inércia e resignação.

Nos amplos espaços do campus universitário a mente podia dar rédea aos sonhos. A cancha era dura, mas os negrinhos do pastoreio não corriam o risco de acabar num formigueiro. A cada dia, porém, o caminho para a periferia era o mesmo e as distâncias voltavam para o seu lugar. Cheguei a conhecer colegas desesperados porque tinham perdido aulas por terem ido passar a semana em Paris. Pobre gente. Há classes para as quais não existe formigueiro e as pessoas espremidas dentro de um ônibus podem parecer no máximo formiguinhas – metáfora natural da brutal naturalização da nossa violência social. Há pessoas para as quais o drama é perder uma mala ou errar a cor do cabelo.

É que a primavera, antes de iluminar as tardes como se não quisesse tirar a nossa esperança, primeiro entra no nosso nariz. Eu sabia que iria chegar, porque em Roma os jasmins começaram a perfumar as ruas e o bairro periférico onde moro começou a exalar aromas festivos com o fim do ramadã. Nos bairros populares do centro da cidade o cheiro de pizza é irresistível. Então o trânsito retomou plenamente a sua forma caótica e os turistas, com a prepotência daqueles que não precisam adaptar-se a nada, voltaram a desrespeitar as calçadas e as ruas. No ar, sente-se uma alegria embriagada, como se não estivéssemos em plena guerra – em plenas guerras –, contagiando superficialmente a nova estação.

Quem passa pelo centro da Cidade Eterna acredita que vivemos o melhor momento das nossas vidas. Os brasileiros felizes também voltaram. E são muitos. São escandalosos. Fazem aquilo que sempre fizeram e que sempre me causou imensa vergonha: circulam pelas ruas fantasiados, com chapéus de vaqueiros ou vestidos com o uniforme de jogadores da seleção de futebol, sem vergonha da barriga proeminente de fartura. Sempre achei que diante da morte fosse necessário um certo pudor. Diante de centenas de milhares de mortes seria preciso um silêncio tumbal. Mas não: os turistas brasileiros fazem questão de exibir a própria opulência, mostrando também uma fé de circunstância, explícita e vulgar, para marcar o seu lugar na praça. É claro que não faltam as bandeiras e as vozes altas, para mostrar publicamente com quem é que estão falando. Sim, dizem as mesmas coisas que horrorizam qualquer democrata e que aqui só não escandalizam porque a maioria das pessoas não fala português – e felizmente eles não sabem dizer essas barbaridades em nenhuma outra língua.

É de inércia e silenciosa obstinação a minha travessia por essa primavera dolorosa, em que saímos da pandemia e caímos na guerra. É indefesa a minha passagem entre essas hordas vergonhosas, enquanto um rio de palavras, histórias e horrores voltam aos meus pensamentos. Os sorrisos triunfantes que revelam têm o cheiro da morte e da indiferença. Eles têm muito: alegria, dinheiro, arrogância. Mas nós, os deserdados, os que trabalham para suar e resistir, somos muitos mais. Somos inermes, mas muitos mais. Somos impotentes, mas muitos mais. Somos desempregados, mas muitos mais. Somos discriminados, mas muitos mais. Somos os invisíveis, trabalhadores imigrantes ou brasileiros que jamais terão a possibilidade de contar o que significa um despejo, jamais poderão explicar a semântica da fome. Somos os anônimos, os números da estatítica da nossa desgraça nacional. Pobre não faz selfie. Pobre não pode atrapalhar o trânsito com as cores da bandeira furando o semáforo. A nós cabe a inércia dos gestos contidos e da persistência. E pensar que, ao fim da festa, são sempre os serviçais a recolocarem a ordem na casa. Não é essa a primavera que esperamos?

Passo no meio dos chapéus, dos óculos, das bandeiras, das risadas com a paciência dos que têm outro papel na cena. Ignoram a minha presença, enquanto se contemplam nos espelhos dos seus celulares. Mas eu não ignoro quem sou. Ninguém deveria ignorar quem é. Em setembro começa a primavera no Brasil e já imagino as fragrâncias que se elevarão no ar.

Sobre o autor

Gislaine Marins

Doutora em Letras, tradutora, professora e mãe. Autora de verbetes para o Pequeno Dicionário de Literatura do Rio Grande do Sul (Ed. Novo Século) e para o Dicionário de Figuras e Mitos Literários das Américas (Editora da Universidade/Tomo Editorial). É autora do blog Palavras Debulhadas, dedicado à divulgação da língua portuguesa.

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