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Cristianismo: um ser-para-os-outros

Miguel Debiasi

Em tempo de secularização, a existência humana, em grande parte, consiste numa participação, desempenhar um papel que o indivíduo se acha incumbido. Observa-se isto em diversos estilos de vida secular, uns manifestos em lutas populares, outros em movimentos em defesa de valores e diretos dos quais acredita nascer a humanidade nova. Na vida secular há receptividade do Evangelho de Jesus Cristo.

A secularização tem significação positiva para a vida cristã, ao reforçar os valores do Evangelho como de fraternidade, solidariedade, liberdade, tolerância religiosa e política e, contrapondo-se, a desigualdade social, pobreza, fome e discriminação de gênero, etnias, realidades que aflige a humanidade. Estando a vida secular relacionada aos valores do cristianismo, os cristãos podem valorizar os benefícios do mundo e da história como palco da vida, que em boa medida, é práxis, produção de bens, sejam de natureza material, espiritual, temporal, transcendental.

Estes bens podem ser vistos em muitos movimentos sociais, populares, políticos que com suas organizações trabalham por um mundo mais humano e justo. Havendo tantas pessoas e movimentos envolvidos na luta por um mundo melhor, faz pensar em que sentido o cristianismo dá significação cristã a secularização. Para a percepção deste sentido é preciso distinguir a secularização do cristianismo da significação cristã à secularização do mundo e do homem.

Muitos teólogos crêem que a secularização do mundo e do homem é uma consequência da vida cristã, portanto, do cristianismo. Ao falarmos de secularização do cristianismo, nos referimos a transformação na sociedade que afeta o cristianismo, a sua mensagem e seus valores. Num sentido negativo, seria dizer que o cristianismo se seculariza mediante assimilação dos valores seculares. Consequentemente, se reduzindo a este fenômeno histórico, sem nada propor e apresentar para a humanidade secularizada. Em suma a secularização, esvazia o cristianismo na sua essência, tira a palavra do Evangelho.

A secularização do cristianismo no Ocidente significou a saída do mundo cristão, dessa forma: a emancipação das realidades temporais em relação às ideias ou às instituições religiosas; a destruição das estruturas ontocráticas e do cosmo sacral; a redução dos regimes sagrados e reservados aos deuses; o abandono do recurso a Deus nos problemas temporais; a rejeição da heteronomia; a ruína do pietismo religioso. Saída do mundo cristão significa que a secularização consiste em mudança de vida, vivê-la mais no sentido histórico e mundano.

No sentido positivo ou da significação cristã da secularização, houve evolução no cristianismo e nos domínios internos da Igreja. No âmbito da Igreja, a secularização provocou abertura em muitos setores, como da liturgia que passou a ser celebrada na língua vernácula de cada país; os ensinamentos cristãos e a catequese passaram a ser pensados num processo de Iniciação à Vida Cristã à luz dos fundamentos bíblicos; repensou-se a teologia, a doutrina e moral cristã, voltadas mais para as questões históricas e a responderem mais a uma ética de caráter social, antropológico, ecológico. Pode-se afirmar que a secularização provocou certa evolução do cristianismo e da Igreja e, ao mesmo tempo, uma significação cristã da própria secularização.

O cristianismo capaz de ressignificar a secularização testemunha da importância da mensagem do Evangelho e da vida da comunidade cristã enquanto espaço de experiência libertadora e transformadora. O teólogo e pastor luterano, mártir no campo de concentração Flossenbürg (Alemanha) Dietrich Bonhoeffer (1906-1945), reflete que o cristianismo e a vida cristã são “um ser-para-os-outros”. O próprio Filho de Deus, apresenta-se um “ser-para-os-outros”, a cruz é este sinal, caminho tomado de forma radical (João 3,14).

Por natureza o cristianismo não se centra em sua própria doutrina e que procura atrair os olhares do mundo para si mesmo, mas ao contrário, segue aquilo que Jesus mostra: o Filho de Deus se encarnou radicalmente para os outros (Mateus 20,28). O cristianismo sendo um “ser-para-os-outros”, indica que a vida cristã no seguimento a Jesus Cristo, dá significação à vida secular pelo testemunho de amor a Deus e de amor ao próximo (Mateus 22, 37-39). A significação cristã da secularização mais que doutrina e discurso, acontece no restabelecer a consistência do amor pelo homem, portanto, igualmente pelo seu Criador Onipotente.

O teólogo episcopal estadunidense Paul van Buren (1924-1998), ligado a chamada teologia secular, concebe o cristianismo sem se servir de uma linguagem religiosa: sem mesmo falar de Deus. A essência e a natureza do cristianismo consistem muito mais em ser que falar de Deus. O essencial é amar mais do que falar. Amar é atos. Amar é um bem concreto. O cristianismo é amar o outro e a outra.

O filósofo e pedagogo austríaco e naturalizado israelense Martin Buber (1878-1965), escreve que a essência do cristianismo acontece na relação “Eu e Tu”. Na relação do “Eu e Tu” acontece o reconhecimento do outro, da pessoa e de Deus. Ser cristão é um ser “Eu e Tu”, dignos do mesmo amor, do mesmo reconhecimento humano e social e, iguais em essência e natureza, todos obra do Deus Criador.

Em tempo de vida secularizada o cristianismo pode significar positivamente a existência humana e, esta estará sempre necessitada de maior empatia pelo outro e da outra, como Jesus determina isso na parábola do Bom Samaritano: “Vai, e também tu, faze o mesmo” (Lucas, 10,37). A secularização não espera do cristianismo muitas doutrinas, mas cristãos capazes de dar sentido à vida humana pela prática do Evangelho.

 

 

Sobre o autor

Miguel Debiasi

Frade da Província dos Capuchinhos do Rio Grande do Sul. Mestre em Filosofia (Universidade do Vale dos Sinos – São Leopoldo/RS). Mestre em Teologia (Pontifícia Universidade Católica do RS - PUC/RS). Doutor em Teologia (Faculdades EST – São Leopoldo/RS).

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