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Coturnos, filhos, tragédias

Gislaine Marins

Para falar de Roma, Sêneca falava da Grécia. É como, milênios mais tarde, diriam Caetano e Gil com outras palavras: "Pense no Haiti, reze pelo Haiti, o Haiti não é aqui". Pensemos na Grécia.

É impressionante pensar que um estoico como Sêneca escrevesse tragédias de tema grego, e não só de tema grego, mas impregnadas de uma violência implacável, que apesar das minhas defesas teóricas e de saber perfeitamente que são de mentirinha, me deixam paralisada de terror. É o que os estudiosos chamam de catarse: uma emoção provocada pela identificação com a personagem vítima de um destino trágico. Quem sente catarse sente que a gente também, na nossa vida prosaica, pode cair em um erro fatal. Mas só é trágico de verdade o que a gente percebe quando é tarde demais.

Sêneca, o estoico, fazia questão de mostrar ao seu público romano que ele não estava falando deles, mas dos gregos. Para isso, os atores que representavam as peças deviam usar coturnos, como os gregos: nada deveria deixar margem de equívoco. E talvez fosse exatamente por isso que o impacto era maior. O efeito da catarse deve ser mesmo este: se aconteceu com um grego, por que não pode acontecer comigo? Terror, aplausos e louros ao poeta estoico.

Sêneca, que foi professor de Nero, que muito provavelmente não incendiou Roma e cuja casa deu origem ao termo grotesco na arte, tocava, por meio das palavras, a dor humana e a violência do poder na Grécia. Se hoje conhecemos algumas histórias perdidas para os gregos é porque Sêneca guardou memória, seus atores usavam coturnos, e tudo isso foi salvo em alguma biblioteca por alguma forma de sorte, curiosidade e respeito pela qual o mundo deve ser grato. Porque conhecer a Grécia é fundamental.

Pensemos na Grécia: que dois irmãos se odeiam, porque a mulher de um se apaixonou pelo cunhado. Pensemos que não se trata apenas de um triângulo amoroso, mas que o irmão traído também perdeu o trono. Pensemos ainda que o irmão traído era amigo dos deuses e que contrariando as expectativas e graças à ajuda divina, ele reconquista o trono que lhe cabe por direito, enquanto o traidor precisa abandonar a cidade. Pensemos que buscando uma aparente reconciliação, o irmão traído e então coroado oferecere a paz ao traidor. Pensemos que este aceita e manda os seus filhos como mensageiros para anunciarem a boa notícia ao rei. Pensemos que o soberano, por sua vez, manda um enviado convidando o traidor para um banquete de armistício, que encerre os ódios passados. Pensemos que enquanto o enviado está a caminho, os sobrinhos estão sendo assassinados pelo rei, como gesto de vingança pela traição sofrida. Pensemos que, no entanto, o rei oferece de fato o banquete no seu palácio e que o irmão acha estranho a ausência dos filhos para a solene refeição. Pensemos que é nesse momento exato que se consuma a tragédia, pois o rei informa ao irmão que ele está comendo os próprios filhos.

Pensemos um pouco na Grécia, nos coturnos e nos filhos mortos para lembrar que este país não é a Grécia e que esta que vos escreve não é Sêneca. Nada nos se assemelha. E por isso mesmo a tragédia está sempre a um passo de nós: porque sabemos muito sobre o passado, mas sobre os planos funestos do presente saberemos apenas quando o banquete estiver servido.

 

Sobre o autor

Gislaine Marins

Doutora em Letras, tradutora, professora e mãe. Autora de verbetes para o Pequeno Dicionário de Literatura do Rio Grande do Sul (Ed. Novo Século) e para o Dicionário de Figuras e Mitos Literários das Américas (Editora da Universidade/Tomo Editorial). É autora do blog Palavras Debulhadas, dedicado à divulgação da língua portuguesa.

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