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Corações ardentes, pés a caminho 

Miguel Debiasi

A vida é vocação. A primeira vocação é promover a vida. Na concepção cristã são muitas as vocações e seus modelos. A história da Igreja e do cristianismo é constituída de milhões de vocacionados na missão do Evangelho. A Igreja elege 2023 como o 3º Ano Vocacional, com tema: “Vocação: Graça e Missão” e com o lema “Corações ardentes, pés a caminho” (Lucas 24,32-33). A falta de vocacionados ao sacerdócio e vida religiosa consagrada é uma das pedras no sapato da Igreja e das congregações religiosas. Sem dúvida, a realidade é desafiadora.

 

Há décadas o tema das vocações está sendo pauta de congressos da Igreja do continente Latino Americano. Em 1994, aconteceu o 1º Congresso Continental Latino-Americano de Vocações com o tema: “A pastoral vocacional no continente da Esperança”. Nos últimos cinquenta anos a Igreja no Brasil realizou vários congressos, anos e simpósios sobre vocação. Em 1999, aconteceu o 1º Congresso Vocacional do Brasil, com o tema: “Vocações e Ministérios para o Novo Milênio” e o lema “Coragem! Levanta-te, Ele te chama” (Marcos 10,49). O 4º Congresso Vocacional aconteceu em 2019 com o tema “Vocação e Discernimento” e o lema “Mostra-me, Senhor, os teus caminhos” (Salmo 25,4). O 1º Ano Vocacional aconteceu em 1983 e segundo em 2003, e o Simpósio em 2014. O esforço da Igreja nesta questão é notório, mas os resultados ainda são tímidos.

A etimologia da palavra “vocação” é derivada do latim Vacatio,“um chamado”, de Vacatus, “pessoa chamada”, de vocare, “chamar”, de Vox, “voz, som, chamado, grito, fala”. A palavra vocação está em consonância com a natureza etimológica ou origem do termo Igreja ek-klesia, em grego que significa chamado para fora”. Na compreensão cristã, a vocação é o chamado de Deus que se direciona para fora, para a missão do Evangelho, para o serviço do povo de Deus e de sua obra criada. 

Na narrativa bíblica o chamado acontece sempre dentro de uma realidade e contexto do povo de Deus. Moisés que vivia uma história conturbada, como filho de hebreus, criado junto ao faraó do Egito, na iminência de ser preso, perseguido (Êxodo 1,22-25), foi chamado por Deus para libertar o povo da escravidão egípcia (Êxodo 3,1-12). Deus dirige-se às mulheres, Judite e Ester, viúvas, sem grande papel de lideranças, mostrando que o chamado é para todos (Rute 1,14-17; Judite 8,1-36). O profeta Oseias no contexto de seu casamento percebe o chamado de Deus e de seu amor pelo povo de Israel (Oseias 3,1-4). O chamado de Jonas mostra que superam todas as vontades humanas (Jonas 1,1-3). Maria ao aceitar o chamado de Deus, abre caminho para o verdadeiro discipulado de Cristo: ela O acompanha desde antes do Seu nascimento (Lucas 1,26-38), até Sua morte (João 19,25-27) e após Sua ascensão continua servindo a missão do Evangelho na fidelidade (Atos dos Apóstolos 1,12-14).

 

Em tese, pelo batismo os cristãos deveriam formar a Igreja vocacionada de profetas, reis, sacerdotes, para viver a missão do Evangelho. Essa missão é levar o amor e a justiça a todas as pessoas oprimidas e marginalizadas, edificando o Reino de Jesus (1Tessalonicenses 5,8). O chamado de Deus é para todos os cristãos, bastaria à resposta positiva e dedicar-se ao Reino de Deus (Mateus 13,44-52). Mas a realidade da Igreja é outra, de poucos vocacionados ao sacerdócio e a vida religiosa consagrada. As causas da falta estão associadas à história do clero e a limitação pastoral da Igreja.

 

Na história da Igreja a evangelização é atividade atribuída ao clero. O clero tornou-se o autor ou alma de toda cultura cristã, da organização social, política e do pensamento teológico. A maioria dos cristãos receberam os ensinamentos da fé e o catecismo dos sacerdotes e religiosos e religiosas. Por séculos o clero era o motor da sociedade. Muitos rapazes pela ordenação sacerdotal entravam para uma casta – o clero - que funcionava como uma estrutura social inabalável a mais de mil anos, sem precisar modificar seu funcionamento ou no máximo fazer pequenos ajustes de manutenção. Esse modelo sacerdotal constituindo-se como uma instância na Igreja e com definido papel religioso, político, social e cultural na sociedade e com muito destaque e privilégios.

 

Há séculos a pompa social clerical despertou adolescentes, rapazes e moças para abraçarem as vocações sacerdotais e a vida consagrada masculina e feminina. A classe clerical fortalecia-se também pelas condições sociais, como: as famílias eram numerosas e praticantes da cultura religiosa cristã; e o estado social de pobreza das famílias e das inexistentes alternativas de formação humana para os filhos. Todas as condições sociais favorece ao crescimento do clero – bispos, sacerdotes, religiosos e religiosas. Muito por esses fatores o clero era considerado membro da primeira ordem social que recebia legitimação e responsabilidade de toda natureza perante a sociedade.

 

Mas o mundo mudou. A sociedade e a cultura mudaram. E a Igreja resistiu às mudanças. Sob a influência do mundo moderno, da sociedade e da cultura secularizada as famílias optaram por poucos filhos. De certo modo, a escolha da família colaborou com a transição da cultura cristã para o secularismo onde as vocações são muito escassas e minguas. No contexto da secularização, o chamado primordial que os jovens ouvem e correspondem é o humano, em muitos casos, rompem com a Igreja e com processo de evangelização. O chamado secular é mais fascinante para os jovens, visto que o clerical e religioso perdeu sua pompa social. Claro que há sempre exceções que escapam, que jovens se libertam das pressões familiares, dos grupos sociais e optam pelo sacerdócio e vida religiosa consagrada.

 

Entre as condições para reverter essa situação passa pela Pastoral da Juventude, sem essa iniciativa a angústia da Igreja tende a se prolongar por um longo tempo. É preciso da reinvenção da Pastoral da Juventude animando os jovens e adolescentes para práxis da fé a despertarem maior consciência sobre a vocação ao sacerdócio e a vida religiosa consagrada. Na incapacidade de um trabalho pastoral com a juventude rema-se contra a nova realidade das famílias que perderam sua tradição religiosa, de certa forma, também o encanto pela Igreja e suas atividades.

 

Certamente, o Espírito Santo de Deus não parou de agir, é preciso sabedoria para discernir em que direção está soprando com força e qual jovem está convocando. Ora, a ação de Deus dá uma sentença que desperta consciência e animação na juventude em dar uma resposta positiva ao chamado à vocação sacerdotal e religiosa. O futuro do clero e da Igreja é apostar num grande Projeto Vocacional, algo mais que um Ano específico.

Sobre o autor

Miguel Debiasi

Frade da Província dos Capuchinhos do Rio Grande do Sul. Mestre em Filosofia (Universidade do Vale dos Sinos – São Leopoldo/RS). Mestre em Teologia (Pontifícia Universidade Católica do RS - PUC/RS). Doutor em Teologia (Faculdades EST – São Leopoldo/RS).

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