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Brasil: o arquipélago das flores

Gislaine Marins

Antes havia uma ilha, agora somos um verdadeiro um arquipélago, uma constelação de misérias que poderiam, por coerência à barbárie e por franqueza classista, substituir as estrelas da nossa bandeira.

“O que coloca os seres humanos da Ilha das Flores depois dos porcos na prioridade de escolha de alimentos é o fato de não terem dinheiro nem dono. O ser humano se diferencia dos outros animais pelo telencéfalo altamente desenvolvido, pelo polegar opositor e por ser livre. Livre é o estado daquele que tem liberdade. Liberdade é uma palavra que o sonho humano alimenta, que não há ninguém que explique e ninguém que não entenda.”

A nota citação é do documentário Ilha das Flores, de Jorge Furtado, premiado internacionalmente em 1989, e que expôs de maneira sintética e dramática não apenas o mecanismo de mercantilização das pessoas, mas também a inaceitável pobreza estrutural em um país rico como o Brasil.

Poderia ter sido filmado hoje, à luz das declarações do Ministro da Economia.

Para dizer a verdade, o que o filme mostrou na época não era algo novo em um país escravocrata, que gosta de usar a palavra liberdade para justificar a vilania e a exploração sistemática que promove. Então, o filme causou vergonha por desmascarar o que estava à vista de todos. Hoje, temo que já não haja quem se envergonhe por ver tanta miséria entre nós. Pelo contrário, a pobreza alheia é útil para abrilhantar o sucesso daqueles que pretendem convencer que seus lugares de poder e riqueza são resultado do mérito pessoal, da inteligência, do esforço puro e simples, como se não contassem os círculos que frequentam, a classe social de onde vieram, a escola que pagaram, os favores que receberam e… por que não dizer a verdade: as pessoas que corromperam.

Vemos hoje um espetáculo de estrelas cujo mérito é a devoção política e cujo currículo exclui os nomes fundamentais do campo do saber que deveriam dominar. Não ficam encabulados por fazerem arbitrariamente cortes no nosso acervo cultural em nome de uma política linguística e cultural tacanha ou por ignorarem personalidades que elevaram o nome do nosso país no mundo. O que importa é a ostentação do poder, a glória de ocupar um espaço que outros obtiveram como corolário de um percurso acadêmico ou profissional e de uma trajetória política reconhecida.

Portanto, para os que não sabem ou não lembram, façamos dois passos atrás na linha da história. O mundo estava à beira de uma catástrofe bélica e o Brasil caminhava para mais um episódio ditatorial quando o pai de Chico Buarque escreveu o livro Raízes do Brasil. Em uma passagem, Sérgio Buarque de Holanda transcreve a mentalidade escravocrata que vigorava no nosso país antes da proclamação da abolição da escravatura, apresentando um trecho de uma queixa de um proprietário de escravos que se sentia traído pela ideia de liberdade. O escravocrata comparava os nossos escravos, alimentados pelos donos e, segundo as suas concepções, bem tratados, com os trabalhadores ingleses, para os quais vigorava a “liberdade”… e o abandono ao seu próprio destino. De fato, segundo o senhor de escravos, na Inglaterra da liberdade, ninguém cuidava do branco pobre, pois ele era livre e, portanto, totalmente responsável pelo próprio fracasso.

Eis a mente de um escravocrata que, traduzida na semântica neoliberal, significa: diante da falta de um dono, esses pobres-diabos fiquem entregues a si mesmos. O neoliberal não admite a ideia de um Estado em prol do bem comum. O Estado, como já fora durante o sistema escravocrata, deve servir unicamente à classe econômica dominante. Esta é a realidade do “Estado mínimo” pregado pelos neoliberais no Brasil. É um retorno, por outros termos, ao sistema de servidão, de esmolas aos necessitados e de nenhuma política pública de promoção de oportunidades, para não falar de inclusão ou assistência social – palavras que eles odeiam mais do que tudo. A chamada “proteção”, que os donos de escravo afirmavam garantir, resume-se a uma hipócrita relação de pequenos favores que permitam a perpetuação da miséria como estrutura social. Por isso, qualquer política da ampliação da classe média e de ascensão da classe média não é admitida como uma tarefa do Estado liberal. Pelo contrário, os privilégios das classes economicamente dominantes foram, são e devem continuar sendo, segundo esses senhores, um interesse de Estado.

Nessa concepção sela-se a sugestão de que os pobres podem muito bem viver das migalhas das classes média e alta. A gestão neoliberal que nos governa não contempla a ideia de oportunidade para as pessoas, mas de proteção dos interesses de quem comanda economicamente o país. Vivenciamos plenamente, mas ocultamente, os valores escravocratas que caracterizaram a nossa colonização e nunca foram superados, pois a nossa independência não colocou o fim da escravidão como uma condição necessária para favorecer a paridade, como aconteceu nos esforços estadunidenses durante o seu processo de formação, a despeito de todos os problemas de segregação que conhecemos. A mentalidade escravocrata não foi superada nem mesmo pela república, pois enfrentamos na prática os limites da servidão (que para quem não sabe é sinônimo de escravidão, com uma colocação geográfica específica) e a sua máxima expressão política: o voto de cabresto. Qual seria, realmente, a tal liberdade de quem é obrigado a votar no candidato do seu patrão para não ser condenado à total miséria e a toda sorte de ameaças? E hoje, qual seria, de fato, a liberdade de quem é controlado por milícias e por fanáticos religiosos que ameaçam o despejo dos que não obedecem, o linchamento e a profanação dos seus símbolos religiosos para os que não seguem os seus deuses?

A nossa concepção escravocrata não foi superada pelos modernos projetos arquitetônicos que acompanharam a euforia da construção da nossa capital, que transformaram as nossas cidades, mas não retirou a possibilidade de construir quartos de empregadas minúsculos, sem arejamento. A nossa política trabalhista não suprimiu a possibilidade de a empregada dormir no serviço, sendo, dessa forma, literalmente excluída do convívio familiar e excluída da oportunidade de acompanhar o crescimento dos próprios filhos. Recentemente, por conta desse sistema anacrônico e profundamente escravocrata na sua concepção, vimos uma famosa artista lamentar o fato de ter pegado a covid porque a sua empregada, depois de várias semanas confinada com os patrões, visitou a sua família – escândalo! Por conta desse vergonhoso sistema, vemos com certa frequência notícias de empregadas libertadas do estado de escravidão em que se encontram. E vemos, pontualmente, os acusados desculparem-se, afirmando que tratavam a serviçal como uma pessoa da família. Sim, da família, só que sem direito ao descanso, sem direito a férias, sem direito a salário, sem direito a ter vida própria. Em geral, essas pessoas dizem que são protetoras e professam-se defensoras da liberdade, com a diferença que não aplicam esse concieto aos seus subordinados e nem às pessoas que se encontram em situação de exclusão social. A liberade vale somente para elas próprias.

Essas pessoas são muito bem representadas pelas ideias do nosso Ministro da Economia. Eu é que teimo em não me sentir representada. Tenho essa estranha esperança de que o Estado seja para todos, seja para oferecer oportunidades iguais para todos e oportunidades mais iguais para os que precisam de mais igualdade para escalarem os degraus que poderão retirá-los da miséria. Por isso, eu defendo a obrigatoriedade da escolarização pública: o estado deve garantir e, só depois de o direito ter sido garantido, o cidadão pode arcar com as responsabilidades de não ter colhido as oportunidades recebidas. No nosso sistema distorcido, as pessoas defendem a liberdade de estudar nas escolas particulares, de deixarem milhares de crianças abandonadas a um sistema sem adequado investimento público e de se acharem vitoriosas porque alcançaram um lugar ao sol. Isso é muito fácil, quando se compete com quem está fora da competição.

Acho que já escrevi demais. Por enquanto, calo, mas não me conformo. Passaram-se mais de trinta anos do lançamento de Ilha das Flores e, hoje, o que vemos não é uma ilha, mas um país transformado em um arquipélago de desesperados. Isso pode mudar, mas para tanto é necessário termos um Estado e termos cidadãos comprometidos em superar a escravidão e em defender a verdadeira liberdade. A liberdade citada no documentário e citada no início deste texto é um trecho do poema Romanceiro da Inconfidência, de Cecília Meireles. Eu sei que a poeta me perdoaria se eu dissese que a liberdade é uma palavra que o sonho humano alimenta, que se pode explicar e se pode entender. Mas este já seria um outro texto, sobre as figuras de linguagem contidas no filme e no poema, sobre a interrelação entre as duas obras e sobre a relação entre ficção e realidade. É algo urgente, necessário. Sim, prometo voltar ao tema, como passarinho que sabe que a liberade é abrir as asas da nossa existência.

Sobre o autor

Gislaine Marins

Doutora em Letras, tradutora, professora e mãe. Autora de verbetes para o Pequeno Dicionário de Literatura do Rio Grande do Sul (Ed. Novo Século) e para o Dicionário de Figuras e Mitos Literários das Américas (Editora da Universidade/Tomo Editorial). É autora do blog Palavras Debulhadas, dedicado à divulgação da língua portuguesa.

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