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A Santa Ceia Olímpica

Vanildo Luiz Zugno

Muitos de nós acompanhamos a polêmica em torno a um dos quadros do longo e inovador espetáculo de abertura dos Jogos Olímpicos de Paris. A cena que agitou as redes sociais e provocou a ira de muitos cristãos, principalmente católicos, foi a que representava uma ceia com personagens queer. O órgão oficial de comunicação do Vaticano se pronunciou, assim como os bispos franceses, alguns bispos brasileiros e diversos grupos e personalidades cristãs e até não cristãs.

Aos olhos de muitos, a cena foi interpretada como uma paródia do quadro da Última Ceia de Leonardo da Vinci e, indiretamente, uma ofensa à Última Ceia de Jesus Cristo com os apóstolos e a Eucaristia que, para todos os cristãos, é um Sacramento da presença viva de Deus no meio de nós.

Diante da repercussão, os criadores artísticos do show de abertura das Olimpíadas vieram a público afirmar que não se tratava de uma referência ao quadro de Leonardo da Vinci. Segundo Thomas Jolly e Daphné Burki, na verdade, a cena seria uma releitura LGBTQIA+ do quadro O Festim dos Deuses de Jan Harmensz van Biljer, pintado em torno de 1635 e hoje conservado no Museu Magnin em Dijon.

Uma observação calma e serena da cena olímpica e do quadro de van Biljer dá razão a Jolly e Burki. Mas eles não tem razão ao afirmar que não queriam ofender os cristãos pela razão de que, salvo raras exceções, não apenas no Ocidente mas em quase o mundo inteiro, a primeira associação de quem viu a cena foi com o quadro de Leonardo da Vinci que está na memória viva de todas as pessoas enquanto o quadro de van Biljer é praticamente desconhecido fora do mundo dos espertos em arte. Daí a justa indignação dos expectadores que se sentiram ofendidos e manifestaram seu descontentamento.

Por que esta diferença entre a intenção dos produtores e a recepção dos expectadores? Por uma lei básica da hermenêutica, como nos ensina Paul Ricoeur. O sentido de um texto ou de qualquer obra de arte, nos lembra o filósofo francês, não depende apenas da intenção do autor ao produzi-lo. Depois que tornou pública sua obra, o autor não é mais dono do sentido que lhe quis imprimir. O sentido de uma obra depende também de como os receptores a interpretam pois entre o mundo de sentido do autor e do receptor não há univocidade. São mundos diferentes e, muitas vezes, a obra, ao passar de um para o outro, muda de sentido.

Voltando ao caso concreto da cena da ceia na abertura dos jogos olímpicos, o que para seus autores seria a ceia dos deuses em que Dionísio/Baco ocupava o lugar central, para a grande maioria dos expectadores era a ceia de Jesus Cristo rodeado por discípulos com identidades sexuais indefinidas.

Não creio que Thomas Jolly e Daphné Burki e aqueles e aquelas que planejaram nos mínimos detalhes o espetáculo fossem grosseiramente ingênuos a ponto de ignorar a possível confusão de intepretação a que ela poderia dar origem. Sou mais inclinado a pensar que o fizeram propositalmente utilizando a técnica tão comum na publicidade de criar a ambiguidade para atrair interesse do público. Mas, digo novamente, isso é o que eu interpreto. Não sei se realmente eles pensaram assim. Pode ser que não. E isso só eles poderiam confirmar ou negar.

De qualquer modo, alcançaram o objetivo – direta ou indiretamente – de fazer com que a efêmera cena permanecesse na memória e continue a fazer com que muitos, por bem ou por mal, lembrem da sua obra.

Caíram os cristãos e suas lideranças na armadilha por mim imagina que teria sido criada pelos idealizadores do desfile? Tenho que confessar que sim... Mais uma vez a reação foi o quer provocou a repercussão e isso só mostra a dificuldade que os meios religiosos têm ao lidar com os modernos meios e técnicas de comunicação.

Há um longo caminho pela frente...

 

Sobre o autor

Vanildo Luiz Zugno

Frade Menor Capuchinho na Província do Rio Grande do Sul. Graduado em Filosofia (UCPEL - Pelotas), Mestre (Université Catholique de Lyon) e Doutor em Teologia (Faculdades EST - São Leopoldo). Professor na ESTEF - Escola Superior de Teologia e Espiritualidade Franciscana (Porto Alegre)."

 

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