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A mesa vazia

Miguel Debiasi

O ser humano não nasce completo. Na compreensão dos psicanalistas o ser humano sofre de tremendas carências. Para os biólogos o ser humano difere do animal que entregue a sua própria natureza sobrevive. Para os pedagogos, o ser humano precisa de formação desde os primeiros dias aos últimos de sua existência. Para os sociólogos, o ser humano precisa de relações sociais sadias para que se desenvolva. Na visão dos teólogos, o ser humano foi criado para uma vida temporal e transcendente. Aos antropólogos o ser humano carece de condições básicas, como a boa alimentação. Estas e outras coisas são necessárias para o desenvolvimento do ser humano.

Quando um produto artístico se padroniza, perde a alma e se transforma em pura comercialização, dizem os profissionais das belas-artes, das artes plásticas. Já para um comerciante a obra de arte só é valiosa quando entra no mercado, no mundo dos negócios, das moedas. Na avaliação dos artistas plásticos a obra de arte pertence ao mundo da alma, do espírito e seu valor é inerente à relação amorosa que se forma desde a intuição à criação. A grande obra de arte transcende a própria intuição e criação. Assim é com o afresco ou a pintura da Última Ceia de Leonardo da Vinci para a igreja de Santa Maria delle Gracie em Milão, Itália. Essa pintura de 4,60 metros de altura e 8,80 metros de largura é uma verdadeira obra e patrimônio cultural da humanidade. Cada visitante da igreja contempla na pintura da Última Ceia significações como a artística, religiosa, teológica, espiritual, material e outras. O cristão em frente à obra de Leonardo da Vinci logo faz memória do mistério Pascal de Cristo, da mesa da Celebração Eucarística, dos comensais diários, das reuniões familiares e das comemorações da vida. A todos participar da mesa da refeição é a condição para o ser humano viver em grupo, em comunidade e em sociedade.

No cotidiano não se pergunta pelo significado material e espiritual da mesa de refeição, visto que ela foi fabricada para colocar os alimentos que saciam uma necessidade básica do ser humano, a fome. Ao seu redor partilha-se a vida, debatem-se realidades e tomam-se decisões. Ela é imprescindível na vida do ser humano com suas realidades e significações. O sacerdote jesuíta, escritor e teólogo João Batista Libanio em sua obra a arte de formar-se lembra-nos que existe uma pluralidade de realidades humanas, a engendrar inúmeras maneiras de pensar, sentir, experimentar, viver. Ao tomar consciência destas realidades o ser humano lapida-se em seu espírito, alma, no agir e no posicionar-se no dinamismo da história. Com conhecimento de si e dos outros participa da vida conjunta, coletiva de construir convívio humano totalmente digno e saudável.

O filósofo prussiano Immanuel Kant (1724-1804) em um de seus escritos diz que “o ser humano não é nada mais do que a educação fez dele”. O teólogo católico brasileiro Hugo Assmann (1933-2008) diz que a educação se confronta com uma apaixonante tarefa: “formar seres humanos para os quais a criatividade e a ternura sejam necessidades vivenciais e elementos definidores dos sonhos de felicidades individual e social”. E acrescenta que “a educação só consegue bons resultados quando gerar experiência de aprendizagem, criatividade para o conhecimento e habilidade para saber acessar fontes de informação sobre os mais variados assuntos”. Em Kant os rumos da vida humana dependem da qualidade da educação oferecida às pessoas. Em Assmann a educação precisa ser a experiência que liberta o ser humano constituindo o aprendizado para a vida.

Libanio vê os processos de educação do ser humano como uma totalidade: inteligência, afetividade e práxis. A inteligência como rainha soberana a reger um conjunto de atividades deve levar ao ser humano a pensar com autonomia, liberdade e com originalidade. A educação ao invés de reprimir e recalcar as emoções deve orientá-las para vontade e para decisão que supera a razão instrumental. A afetividade aprecia as vontades e as dimensões místicas como valores fundantes para a educação. O ser humano se configura pelas relações que se estabelece especialmente em vista da transformação da realidade, para tanto, da práxis. O educador e filósofo Paulo Freire (1921-1997) pensou na educação como ciência da conscientização na perspectiva transformadora da realidade e revolucionária das relações humanas.

O levantamento do Instituto Datafolha mostra que 15% dos brasileiros deixaram de fazer pelo menos uma refeição diária por falta de comida em casa. A falta de comida afeta 37% dos brasileiros de baixa renda. Para 26% dos brasileiros a quantidade de alimento em casa nos últimos dozes meses foi insuficiente para alimentar suas famílias. Este índice sobe para 37% entre as famílias que ganham menos de dois salários mínimos mensais. Entre as famílias que recebem o Auxílio Brasil, que substituiu o Bolsa Família, o índice alcança 39% contra 22% que não foram beneficiadas. O maior percentual de pessoas afetadas pela falta de alimento está concentrado na Região Nordeste. Nas demais regiões do país, os índices variam entre 21% a 25%. A falta de comida alcança 45% dos desempregados. O levantamento do Datafolha ouviu 3.666 brasileiros em 191 municípios de todas as regiões do país, entre os dias 13 e 16 de dezembro de 2021.

A mesa está vazia para milhões de brasileiros. A mesa farta é um dos pilares da educação de um povo. A educação compara-se como um edifício que se sustenta por vários pilares. Fica a conclusão: sem comida não há educação. E, sem educação não há a construção de país ético, justo, digno... Enquanto para milhões de brasileiros as mesas permanecem vazias, todos permanecerão incompletos na ética, na religião, na economia, na política, na cultura, ...               

Sobre o autor

Miguel Debiasi

Frade da Província dos Capuchinhos do Rio Grande do Sul. Mestre em Filosofia (Universidade do Vale dos Sinos – São Leopoldo/RS). Mestre em Teologia (Pontifícia Universidade Católica do RS - PUC/RS). Doutor em Teologia (Faculdades EST – São Leopoldo/RS).

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