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A guerra ou a compaixão?

Miguel Debiasi

A tarefa de pensar sobre a natureza humana parece nunca chegar ao ponto satisfatório. Há algo de ser repensado, reinventado e um novo a ser descoberto. Esta se constitui numa exigência mais imprescindível da vida humana. Ninguém optaria por viver sem conhecimento do potencial da natureza humana. A realidade como da guerra nos faz pensar sobre o ser humano e seu potencial para o mal, eis a tarefa desafiadora.

A realidade em si mesma é superior a qualquer capacidade intelectual, ela influencia e condiciona as ideias. Tamanha é sua capacidade que tem poder de formação de opinião pública. Ela se exibe sob a sua forma mais soberana, do real, que com afinidade natural cria vínculos de formação e domínio humano. Os vínculos que a realidade estabelece são de toda ordem, subjetivos, políticos, econômicos, éticos, ecológicos, religiosos e outros. Os vínculos são tão fortes que se afirma que somos frutos da realidade, do contexto que nos encontramos inseridos.     

Em realidade mundial de elevado grau de tensão se pensa que países, governos, homens abastados e autoridades diplomáticas em seus poderios econômicos e políticos necessitam da guerra como seu bem, sua prosperidade econômica e sua promoção planetária. Os envolvidos com a guerra são tão apaixonados por ela que sustentam que ela se faz necessária para manter a soberania dos países e a paz das nações enredadas no conflito. Para estes, o único valor supremo é a guerra e assim aplicam bilhões de dólares anuais sem escrúpulo. Mas os apaixonados pela guerra não têm coragem de pegar em armas e entrarem para o campo de combate com seus inimigos. Estes terão sempre súditos obrigados a partirem para o campo de guerra. A morte dos súditos não lhe fere a consciência, em contrário, o atiça para financiar o confronto sangrento e bestial.

Estados, governadores, homens abastados e autoridades apaixonados pela guerra atravessam a história da humanidade. Historiadores apresentam estimativas que dos últimos 3.421 anos, apenas 227 não houve guerras. Por ser esta uma realidade que persiste com toda sua potencialidade leva-nos a perguntar pela sua existência, para isto, recorremos à filosofia política e ao pensamento de alguns filósofos que debateram essa questão. O filósofo estadunidense John Rawls (1921-2022), é autor das obras Uma teoria da justiça (1971), Liberalismo Político (1993) e O Direito dos Povos (2001), reflexão esta que é considerada de suma importância para nosso tempo.

No campo da filosofia o surgimento de uma nova ideia é algo que nasce de um processo de reflexão construído ao longo da história. As ideias de Rawls sobre a guerra se baseiam em quatro pensadores paradigmáticos que abordaram esse questão, são eles: Voltaire (1694-1778), pensou a guerra com sua visão humanitária de bases iluministas; Kant (1724-1804), abordou a questão com base em seu projeto de paz perpétua; Clausewitz (1780-1831), pensou na guerra como caso excepcional da política; e Carl Schmitt (1888-1985),  considerou a guerra a luz do conceito do político e o binômio amigo – inimigo.

Com base em Kant, Rawls parte da ideia do Direito dos Povos, que tem como objetivo central fazer com que as sociedades democráticas constitucionais razoavelmente justas existam como membros de uma Sociedade de Povos. Rawls acredita que os grandes males da história da humanidade decorrem da injustiça política. E, estes desaparecerão quando as principais injustiças políticas forem eliminadas por políticas sociais justas.

Para Rawls o Direito dos Povos se realiza onde as diferenças se resolvem por um sistema de cooperação mútua, com isso, o uso da guerra passa a ser restrito. O Direito dos Povos reside na garantia de que muitos problemas da política externa contemporânea como as guerras, a imigração, a fabricação de armamentos de destruição em massas, comercialização de produtos bélicos, seriam resolvidos sem muita preocupação pela mútua cooperação, ou pela ação política da Sociedade dos Povos.

Os povos que constituem a Sociedade dos Povos, simplesmente não teriam motivos para guerrear ou entrar na corrida armamentista, pois as estruturas internas destas sociedades não são violentas, havendo respeito à independência dos povos e à sua igualdade. Na Sociedade dos Povos todos respeitariam os seus princípios de igualdade, de reciprocidade, o pluralismo razoável e a tolerância por meio do estabelecimento de uma base comum de justiça política internacional, pensa Rawls. 

Na proposta de Rawls, percebe-se o projeto da paz perpétua de Kant, que defendia ser possível verificar um ambiente internacional de paz constituído por uma confederação de repúblicas. Ao defender uma Sociedade de Povos, originada da concepção política de uma democracia constitucional razoavelmente justa, Rawls já desrespeita o princípio básico de tolerância que os povos liberais têm que ter em relação a determinados povos não liberais.

Ao defender as instituições liberais considerando que são as mais adequadas para constituir a Sociedade de Povos, Rawls acredita em ideais e princípios da política externa de um povo liberal razoavelmente justo. Basta que os princípios da política internacional formulados a partir do ponto de vista liberal sejam razoáveis para todos, inclusive para o não liberal decente.

Parece-nos bastante óbvio que Rawls é contrário a uma visão cosmopolita que tenha como objetivo final o bem-estar dos indivíduos e não da justiça. Uma concepção de bem-estar dos indivíduos que exclua as sociedades não liberais não respeita o fato do pluralismo razoável, proposta que Rawls apresenta na obra Uma Teoria da Justiça, ou de sua teoria de justiça global.

O Direito dos Povos ou a Sociedade dos Povo é proposta que levaria os indivíduos a pensarem em si mesmo como livres e iguais, vendo seus interesses fundamentais assegurados pela concepção razoável de justiça política. Este projeto levaria a todos a lutarem para proteger a sua independência política, sua cultura livre e o bem-estar de sua cidadania. Isso resulta no interesse de amor-próprio, configurando no respeito adequado de um povo para consigo mesmo, baseado em sua cultura e na sua história.

Em suma, o indivíduo continuaria lutando pelo seu Direito e interesse, nesse caso, para Rawls é legal: a justiça do guerrear e a justiça no guerrear. Isto passa longe do espírito cristão, do projeto do Reino do Céus, que exige um comportamento ético e justo, a compaixão. Infelizmente a compaixão não faz parte dos sistemas econômicos e políticos. Entre guerra e compaixão, fico com a última, nela existe o pleno valor da existência humana.

Sobre o autor

Miguel Debiasi

Frade da Província dos Capuchinhos do Rio Grande do Sul. Mestre em Filosofia (Universidade do Vale dos Sinos – São Leopoldo/RS). Mestre em Teologia (Pontifícia Universidade Católica do RS - PUC/RS). Doutor em Teologia (Faculdades EST – São Leopoldo/RS).

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