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A educação e a loba

Gislaine Marins

Mais de mil pessoas reuniram-se em Roma no último final de semana, sem máscaras, sem distanciamento, seguindo o exemplo de outras cidades europeias, para denunciar a ditadura das vacinas e da prevenção. Não foram multadas, nem impedidas de gritar que a covid não existe: realmente, é difícil viver sob uma ditadura que não agride, não tortura, não censura e não impede que as pessoas digam bobagens. É difícil, porque exige dos seus adeptos um ato de fé: crer que as vacinas deixam graves sequelas, crer que a pandemia é apenas uma notícia falsa usada para controlar a população, crer que as máscaras são um gasto inútil e desnecessário. É preciso ainda mais: acreditar que participar de uma manifestação realizada sem nenhuma obstrução por parte das instituições é um gesto heróico digno de dezenas e centenas de curtidas.

Quem pensa que se trata de mil pessoas desinformadas, engana-se. Os negacionistas podem sustentar extenuantes discussões, em que partem de premissas falsas, usam dados desmentidos pelo método científico e chegam a conclusões totalmente equivocadas. Sabem ler, mas não sabem compreender as informações. Param no primeiro degrau do conhecimento e se dão por satisfeitas. Claramente, não dominam o discurso científico e combatem as descobertas da ciência com as poucas estratégicas retóricas que aprenderam a usar: afirmar com veemência, convencer, gritar, tapar os ouvidos aos argumentos contrários, acusar a ciência de incoerência por basear-se em hipóteses.

O conhecimento científico exige observação, análise, testes, conclusões. Não faz concessões às verdades sob medida para os temores e a realidade que não queremos ver. Cientistas não podem convencer e negacionistas não sabem pensar. É um diálogo impossível em um mundo que requer soluções urgentes.

A vacina deve ser obrigatória, sim. Se os negacionistas não compreendem com as razões da ciência – que está sempre em curso, em evolução, mas é a melhor que temos no momento –, devem compreender com as razões da sociedade, devidamente regulamentadas pelos legisladores, democraticamente escolhidos para organizar a bagunça.

Na realidade, o conceito é simples, mas não para quem acha que liberdade é fazer tudo o que quiser, quando quiser, contra quem quiser, onde quiser. Não é fácil para quem acha que liberdade é um substantivo invariável, que serve para eu fazer tudo o que passar na minha cachola e vocês que se ralem! Não é compreensível para quem é incapaz de ver a relação entre causa e consequência, mas está disponível a ser seduzido por teses ameaçadoras. É complicado para quem acha difícil analisar os dados da pandemia, mas dá espaço ao medo de que algo que não compreende possa comprometer a saúde de um filho. Não percebe que a sua falta de compreensão e a sua crença são tão comprometedoras para a vida quanto o seu medo.

Mil pessoas numa praça: não são uma ameaça, são uma lição. Ensinam que o mundo está cheio de pessoas manipuláveis, que acreditam em ficções, como as crianças acreditam que o lobo mau existe em carne e patas. São poucas, mas nos advertem: a educação é uma missão cotidiana e infinita. Basta que uma geração perca o acesso aos instrumentos do conhecimento para que milhares de pessoas exprimam a sua frustração por meio de convicções, gritos, temores, reduzindo o seu próprio potencial humano a uma mistura de sentimentos irracionalizados. A vida é muito mais do que isso: que limitação viver na reclamação e no temor de estar sendo cerceado! A vida é descoberta, é diálogo, capacidade de estudar fenômenos e de superar desafios com as melhores soluções que somos capazes de alcançar. Para isso, não basta saber ler, é necessário saber entender o que se lê. É preciso esforço para educar e, sobretudo, para aprender e desenvolver o própro potencial.

Ontem reuniram-se cerca de mil pessoas a poucos metros da colina do Capitólio, onde se conserva a estátua representando a loba que amamentou os gêmeos fundadores da cidade e percursores de um império. A Cidade Eterna já possui quase três mil anos e não para de nos surpreender com essas amostras das excentricidades do mundo atual,  que imaginávamos terem sido definitivamente superadas pela difusão do conhecimento, pelas descobertas da ciência, pela capacidade humana de superar os maiores desafios e de vencer os piores problemas. Sim, a educação nunca sai de moda, e nunca deixa de ser uma missão indispensável para não perder os avanços que alcançamos ao longo dos séculos.

Sobre o autor

Gislaine Marins

Doutora em Letras, tradutora, professora e mãe. Autora de verbetes para o Pequeno Dicionário de Literatura do Rio Grande do Sul (Ed. Novo Século) e para o Dicionário de Figuras e Mitos Literários das Américas (Editora da Universidade/Tomo Editorial). É autora do blog Palavras Debulhadas, dedicado à divulgação da língua portuguesa.

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