Um segredo e um mistério sobre a maternidade
Confesso que sou uma leitora que chora lendo um poema ou virando a última página de um romance. Olho para dentro de mim e percebo que choro não pela dor que não tive, como diria Fernando Pessoa, mas pelas dores contadas, que sendo verdadeiras sendo apenas verossímeis, são dores que a gente constata na realidade. Eu choro e sofro de empatia e de impotência: vejo e nada posso fazer, além de revoltar-me com tanta injustiça no mundo. Vejo e a minha única arma é a paralisia resistente, que não deixa que a minha alma embruteça e que os meus olhos não se acostumem à brutalidade da vida.
É que uma mãe deixou o seu filho na roda dos enjeitados aqui na Itália e eu não a condeno por isso. Eu não acho que é uma mulher desalmada. Eu não acho que lhe falta sentimento materno.
Na obra “Nel mare ci sono i coccodrilli” [Há crocodilosno mar, tradução livre], de Fabio Geda, o narrador nos conta a história de um menino afegão abandonado pela mãe na fronteira do Paquistão. A narrativa é baseada em fatos reais: é a única chance de salvar o filho das mãos dos talibãs. Eles exigiam a vida do filho como resgate de uma suposta culpa do pai – supostíssima, visto que a culpa era ter perdido a vida e as mercadorias que transpostava em um acidente rodoviário. O Pasquistão era uma promessa de liberdade, desesperada esperança de liberdade. No entanto, a desejada liberdade significa um menino sozinho na vida atravessando o continente asiático, explorado, capturado por traficantes de seres humanos, caído nas mãos da polícia, fugindo e, por um milagre que às vezes não funciona na literatura, mas acontece na vida, sendo ajudado por um desconhecido que lhe permite embarcar em um navio e chegar à Europa. O menino, entendendo o gesto radical da mãe, apesar de todo o sofrimento que a liberdade lhe custou, telefona para casa e consegue avisar que está são e salvo.
Como julgar as mulheres que veem no gesto de confiar o filho a desconhecidos a única possibilidade de salvação? Alguns dirão que uma mãe jamais pode abandonar o filho: é o imperativo do amor. Só que esse imperativo às vezes se cumpre de maneira inesperada e misteriosa e é suficiente trocar a palavra “abandono” por “confiança” para ver que um gesto incompreensível para muitos pode ser a ação necessária no momento.
Ademais, como a nossa sociedade pode invocar o amor genético, se é a mesma sociedade que aos poucos naturaliza o engajamento de mulheres na gravidez de aluguel? Se o amor fosse genético, não deveriam essas mães temporárias arrancar os seus cabelos e dilacerarem as suas roupas aos serem separadas das crianças às quais deram a vida?
A verdade é que o amor não é apenas genético: a maternidade é uma construção complexa. Se por um lado eu não acredito que as mulheres possam se separar dos seus filhos sem traumas irremediáveis, por outro lado, é preciso que a nossa sociedade pare de culpar as mulheres de acordo com as suas conveniências. Já temos peso demais sobre os nossos ombros.
Não podemos encarnar ao mesmo tempo o papel de mulheres abnegadas em nome da maternidade e ao mesmo tempo a postura distanciada e profissional de quem gera uma vida apenas por contrato. Não podemos negar que as mães adotivas são plenamente maternas,ainda que não transmitam um fragmento sequer do seu dna aos seus filhos. Não podemos dizer que uma mãe que se vê obrigada a separar-se do filho é menos maternas que as demais.
Eu quase contei um segredo sobe a maternidade, que descobri na pele, quando me dei conta de que a vida é uma fragilidade enorme. É do tamanho do amor, que se impõe acima de todos os riscos. Mas basta isso para entender o sentido do termo segredo. O mistério é outra coisa: é navegar na vida sem salva-vidas, é amar de forma absoluta, ainda que incompreensível, e sobretudo incompreensível. É que um segredo pode ser revelado um dia, um mistério jamais. O mistério está na esfera da confiança profunda na vida, que jamais se explica e que se realiza, independentemente dos moralismos, da sociedade e das críticas que sofremos. O mistério é o segredo do amor.
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