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Paca, tatu, São Paulo não

Gislaine Marins

Paca, tatu, São Paulo não

Gislaine Marins

Não existe amor em SP: cantava Criolo anos atrás, mostrando grafites que gritam pelas ruas. Nenhuma cidade pode deter o amor, se ele não circula entre as pessoas. Ninguém pode respirar amor, se no ambiente não se transpira empatia. A falta de amor, então, é de São Paulo? Não, é das pessoas, das suas escolhas, dos seus governantes, de quem faz a cidade ser um espaço de acolhida ou de rejeição, de bem-estar ou de hostilidades.

Paca! Lá estava eu na capital do país líder do capitalismo mundial e, por volta do meio-dia, nas proximidades da Casa Branca, vejo uma dezena de automóveis estacionados e pessoas descarregando caixas de isopor. À sombra das árvores, outras pessoas se organizavam para receber uma refeição: o retrato da filantropia no coração do Ocidente. Ninguém invocou meritocracia, ninguém foi chamado de preguiçoso, ninguém pareceu achar que a distribuição de alimentos iria incrementar a pobreza na cidade.

Não existe amor no Brasil: em meados da década de noventa, quando a administração de Porto Alegre fazia saneamento básico, regularização das vilas e programa de habitação popular, havia quem dissesse que o Prefeito estava transformando a cidade em chamariz para pobre, pois todo mundo que ali chegava sabia que mais cedo ou mais tarde conseguiria participar de algum programa público que pudesse favorecer a sua inclusão social. O que será que pensam agora, quando Porto Alegre virou a capital do Estado mínimo, dos investimentos mínimos e das tragédias máximas?

Ah, o tatu! Quer se sentir sozinho? Venha para a multidão, onde ninguém é brasileiro, ninguém é bem nascido, você é apenas mais um imigrante e o nivelamento se dá por baixo: na estatística da indiferença, a chance de ser considerado um indocumentado sem lei nem rei é a mais provável. Quando o choque de realidade bate na cara das pessoas, a meritocracia adquire novas nuances semânticas.

Não existe amor no nosso país: é que o pobre, o nosso pobre, o pobre da nossa calçada, do nosso bairro, é o rejeito da sociedade. É aquela pessoa que não se esforçou para ter o nosso conforto e não merece que programas assistenciais possam aliviar a sua desgraça. Até a polícia é colocada a serviço da invisibilização dos mais vulneráveis, chegando ao ponto de tentar impedir a distribuição de um prato de comida. Quantos estarão lamentando a impossibilidade de aprovar uma lei para proibir a distribuição de alimentos aos pobres?

Cotia, não! Certamente não terão vergonha desse projeto desumano o seu proponente, nem os seus eleitores, nem os seus apoiadores. É preciso que a gente tenha coragem de olharmo-nos bem nas pupilas e ver que temos pelo menos três categorias de pessoas na nossa sociedade: as que desejam um mundo mais justo e as que se limitam à filantropia assistencialista, que não altera substancialmente a estrutura de desigualdade arraigada que nos separa.

E depois existem os outros: aqueles que desprezam o ser humano em condição inferior à sua, que não conhecem a palavra piedade, compaixão e caridade; aqueles que não têm coração; aqueles que não se comovem. Aqueles que invocam Estado mínimo, privatização máxima, abolição de qualquer Estado de bem-estar social. Aqueles, enfim, que desconhecem o conceito de civilidade – o saber viver em sociedade. Aqueles que contribuem para a destruição dos valores comunitários e arrastam lentamente a nossa democracia para o estado de barbárie. Paca, tatu, cotia, não.

Sobre o autor

Gislaine Marins

Doutora em Letras, tradutora, professora e mãe. Autora de verbetes para o Pequeno Dicionário de Literatura do Rio Grande do Sul (Ed. Novo Século) e para o Dicionário de Figuras e Mitos Literários das Américas (Editora da Universidade/Tomo Editorial). É autora do blog Palavras Debulhadas, dedicado à divulgação da língua portuguesa.

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