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O necessário diálogo entre a fé e a ciência

Maria Clara Bingemer

O caos que se apossou do Brasil com a chegada do coronavírus apresenta várias dimensões: sanitária, política, ideológica, econômica.  No entanto, há igualmente uma outra dimensão, que eu chamaria aqui de caos do discurso pseudocientífico – em boa parte artificialmente produzido.

 Enquanto os cientistas – médicos, pesquisadores, sanitaristas, técnicos em saúde – explicam à população como se porta a doença, quais as medidas necessárias para combatê-la, outras vozes parecem interferir no processo dessa comunicação adotando uma linguagem que instaura a confusão.   

A ciência é um dos motores do desenvolvimento da humanidade e da vida. Seu progresso tem sido responsável por grandes melhorias na vida humana, sobretudo no decurso do último século, ainda que os frutos desse progresso não tenham sido repartidos equitativamente pelo mundo.  Por outro lado, o mau uso que muitas vezes é feito dos conhecimentos científicos foi, no mesmo século passado, causa das piores provações pelas quais a humanidade teve que passar. Por isso, ainda que o progresso da ciência que a racionalidade moderna possibilitou seja altamente positivo; ainda que se considere correta a afirmação de que a ciência é o motor do desenvolvimento em todas as frentes; os esforços feitos por muitos países e regiões do globo no domínio científico ainda permanecem muito aquém de um mínimo julgado desejável. E boa parte das razões para tal é a manipulação que interesses econômicos, políticos e ideológicos fazem contra a objetividade e a excelência que deve caracterizar toda ciência.  

No momento em que explodiu a pandemia viral, a ciência – a medicina, a biologia, a infectologia e todas as áreas científicas que tratam da vida – ocuparam a linha de frente das atenções.  Buscaram-se orientações, explicações, argumentos lógicos que ajudassem a administrar a tragédia que vivíamos. 

Por outro lado, competições ideológicas e embates políticos, muitas vezes se atravessaram no caminho do trabalho científico.  E isso aconteceu por diversas formas: seja a do obscurantismo, que ataca retoricamente a liberdade de pesquisa científica, seja com políticas públicas retrógradas que cortam verbas e esvaziam institutos e laboratórios de pesquisa.  Em um momento em que a crise ecológica atinge proporções nunca antes vistas, os impactos climáticos são minimizados, e os alertas emitidos pela comunidade científica desprezados como se não fossem evidências objetivas e sim opiniões casuais e não fundamentadas. 

Com o Covid-19 a ciência voltou a ocupar seu papel de baluarte da verdade objetiva e verificável. Tornou-se um refúgio firme para uma sociedade assustada e vulnerabilizada pelo avanço descontrolado da doença e a subida dos números de vítimas fatais. A ciência é, hoje, a linha de frente no combate à pandemia. Fornece à população números, informações, percentagens que permitem ter um quadro do que se passa.  E podem ser vistos ao mesmo tempo inúmeros laboratórios empenhados em encontrar remédios que tratem a doença causada pelo vírus, sequenciando o genoma do vírus em tempo recorde, buscando pelos caminhos da pesquisa apaixonada e responsável uma vacina. 

Há, no entanto, tentativas de travar esse trabalho, muitas delas invocando o nome de Deus.  Contestam-se os dados fornecidos pela ciência, contradizem-se informações precisas e objetivas e se dão orientações conflitantes à população. Afirma-se que Deus salvará a todos do vírus, que o que os cientistas dizem é um exagero, e que o que há que fazer é orar porque Deus nos salvará do vírus.

Desde sempre, em todas as religiões, mas muito concretamente nas religiões monoteístas e mais especificamente no judeu-cristianismo, Deus não se imiscui nos negócios humanos para interferir na ação da própria humanidade na resolução de seus problemas.  O Espírito de Deus inspira, anima, orienta, consola, mas não toma as ferramentas das mãos da humanidade para resolver, em um passe de mágica, as dores e os problemas que essa própria humanidade está passando. 

Toda tentativa ao longo da história de converter Deus em árbitro da ciência, impedindo-a de avançar, já foi suficientemente desmascarada e situada em seu devido lugar: é falsidade e embuste. Assim, governantes despóticos e irresponsáveis que buscam desautorizar os cientistas que dizem a verdade em meio a um momento grave como o que estamos vivendo terão que responder diante do tribunal da história.  E também diante do tribunal divino, que fará cair os véus, desvelando suas tentativas de vendar os olhos do povo com ilusões e falácias, na sua mais atualizada forma: as fake news. 

Em meio à pandemia, a comunidade científica tem construído uma rede sólida de informações, colocando a ciência na vanguarda das políticas de combate à pandemia. Assim, se pode combater o obscurantismo institucionalmente, usando de transparência e honestidade, atualizando constantemente as medidas adotadas e procurando adequar as condições da saúde às reais necessidades decorrentes da própria pandemia.  E a fé não pode estar ausente dessa rede e desse diálogo. 

Falar de Deus em tempos de coronavírus implica  dialogar com a ciência e deixar-lhe plena autonomia no campo e competência que lhe é própria. Não misturar epistemologias ou querer tratar o que releva do campo do biológico com instrumentos falsamente espirituais que matam em vez de curar e alimentam políticas genocidas, empurrando as pessoas para o contágio e muito provavelmente para a morte. 

Sobre o autor

Maria Clara Bingemer

É professora do departamento de teologia da PUC-Rio e decana do Centro de Teologia e Ciências Humanas da mesma universidade. Ela é graduada em Jornalismo, mestre em Teologia e doutora em Teologia Sistemática.

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