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O luxo pode ser triste

Gislaine Marins

Recomeço por Adélia Prado e o poema em que descreve o amor como uma “palavra de luxo”. Trata-se de um luxo necessário e de uma abundância que deve ser bem compreendida para ser apreciada. Luxo, na origem, era um termo ligado à abundância vegetal: a natureza nos brinda com a sua exuberância. O amor é um excesso humano,  talvez porque seja o sentimento que melhor exprima a nossa característica típica como primatas: vivemos em sociedade e a sua exuberância é parte da nossa natureza.

Ao contrário do que muitos pensam, amor não é a negação da morte, mas é afirmação da vida. Pode ser cego, ingênuo, como representavam os latinos: feito menino, de olhos vendados. Pode faltar-lhe o discernimento, mas nisso está também a sua visceralidade: não podemos nos distanciar para vermos quem somos sem pagar o preço da nossa visão no espelho – pelo avesso, plana, icônica. O amor é sentido mais do que visto e quando é descrito está fora de nós, não podemos enxergar dentro das nossas entranhas. O amor é parte de nós, de cada ação que cumprimos: da dedicação a quem amamos ao afinco que empregamos naquilo que fazemos, viver é amar. Só quem odeia a vida pode destruir, destroçar, desmanchar o que os esforços humanos alcançaram para o bem comum. É o ódio que destrói o meio ambiente, o nosso patrimônio comum, abala a confiança (outra palavra que só pode ser vivenciada humanamente, coletivamente) e envenena o nosso olhar. O amor não é capaz dessas coisas.

Apesar disso, há uma relação entre amor e morte, pois se o amor entrelaça-se com o próprio viver, a morte é o fim do nosso percurso, mas não o ponto final. Há um pequeno poema de Jacques Prévert, conhecido por tantos talentos, mas também pela capacidade de exprimir de maneira lírica o amor. Ele escreve:

A vida é uma cereja

A morte é um caroço

O amor é uma cerejeira.

Nesses três versos temos um tratado sobre o ciclo da vida. Sabemos bem que a morte nos espera, como quem come a fruta e sabe que irá encontrar no centro e no fim do mastigar a semente a ser devolvida à Terra. O que restituímos e partilhamos com o mundo, com a família, com os amigos, com os colegas, com a nossa comunidade, é a semente que deixamos na esperança de que se transforme. Os nossos laços são a linfa fértil que permitem às sementes manter a umidade necessária para brotar, sob outras formas.

Das leituras brotam memórias para enfrentar outros presentes; das recordações nasce a coragem para seguir adiante como já fizeram os que viveram antes de nós; da saudade nasce a esperança do reencontro. Nada disso pode vingar se não for nutrido pelo amor. É assim que ao morrer, a vida brota e o amor esplende como árvore que dará novos frutos. O amor é um ciclo infinito: mas nem sempre é feliz.

O amor exige sacrifícios, abnegação, compreensão, resistência. Nem sempre é feliz, como no poema de Adélia Prado, em que ela fala do trabalho, do estudo, do cansaço, da fome, sem nunca mencionar a palavra amor, um luxo que parece não ser concedido e que, no entanto, está presente em cada ação descrita no texto. O amor pode ser triste: mas é um luxo. Um luxo que devemos exigir.

Anos atrás discutia-se a oportunidade de incluir na nossa Constituição o direito à felicidade. É uma ilusão e, de fato, a proposta terminou por ser arquivada. A felicidade, como bem sabemos, sempre acaba. Não o amor, que pode ser fustigado pelas dores da vida, mas não finito. Concedamo-nos a esse luxo e exijamos que que seja impresso nas nossas vidas, com letras maiúsculas e obrigatoriedade de uso: é um débito que temos para com a nossa dignidade e é uma herança nobre que podemos deixar aos que virão depois de nós. Não abramos mão dos luxos pelos quais vale a pena viver.

Sobre o autor

Gislaine Marins

Doutora em Letras, tradutora, professora e mãe. Autora de verbetes para o Pequeno Dicionário de Literatura do Rio Grande do Sul (Ed. Novo Século) e para o Dicionário de Figuras e Mitos Literários das Américas (Editora da Universidade/Tomo Editorial). É autora do blog Palavras Debulhadas, dedicado à divulgação da língua portuguesa.

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