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Hipocrisia não é água de coco

Gislaine Marins

Certas coisas acontecem quando a gente não aguenta mais. Diante de um doce típico, em um restaurante árabe, perguntei à queima-roupa para a minha orientadora: afinal, para que serve a literatura? Era uma pergunta de quem adora livros, mas que vivia o tormento da vida real: a escola real, a pobreza real, a injustiça real, uma juventude real exposta à sedução da televisão. O modelo dentro da caixinha mágica é osmótico: o espectador dilui as suas resistências e se deixa plasmar. A tevê propõe uma experiência passiva, fácil, digerível. Os livros exigem esforço, decifração, desvendamento, curiosidade. Tudo o que não é preciso ao engolir formatos e epílogos sem esforçar a imaginação.

A literatura não serve para nada, especialmente não serve a nada, não é serva e não espera transformar o leitor em servo das interpretações. Isso torna a literatura um modelo de liberdade e um espaço para exercer a nossa liberdade. Não é uma operação fácil: a liberdade que a leitura nos concede é exigente, requer um pacto de lealdade. O leitor sabe que as margens não acabam na página, relacionam-se com outros livros, com variados tempos, com histórias realmente existidas, mas não precisamente recriadas. Aprendemos a caminhar sobre o fio da navalha, que nos fere quando ignoramos a hipocrisia contida no que lemos e no que queremos ler. A literatura nos coloca diante da mentira, da ficção, e das suas relações com aquilo que pode ser admitido como real e verdadeiro. O maior erro de um leitor é negar que seja um hipócrita convocado a representar o seu papel.

Enquanto eu me questionava sobre a utilidade da literatura, fazia da melhor forma possível o papel do hipócrita, que na Grécia Antiga era nada mais nada menos que o ator. Ao perguntar com tamanha ânsia, que quase me levou a abandonar os meus melhores propósitos estudantis, colocava-me no lugar dos outros e sentia as dores que não eram minhas, embora também fossem. Dava uma mordida no doce e pensava que muitos não entendiam o prazer da leitura que eu experimentava, desconheciam o percurso de intimidade com as palavras, de encarnação de uma personagem como os melhores hipócritas sabem fazer. Ler era o próprio caminho para essa aprendizagem. Tudo ótimo, mas uma coisa era certa: não era água de coco.

Aprendi com as formas passivas, que entregam sentidos empacotados e indiscutíveis, que o mais domesticado hipócrita é o que não se vê no espelho. É o que ignora a sua hipocrisia, desconsiderando a sua própria identidade. Mas se este é alguém manipulável de acordo com a cena a ser representada, o pior hipócrita é o que sabe bem o que finge, quanto finge e quanto estrago pode provocar. O hipócrita compulsivo é o devassador da ética. Para o hipócrita convicto, relações são alavancas sociais, mentiras são meras versões da verdade, normas são detalhes secundários, provas são apenas opinião. Tudo pode ser relativizado, questionado, desfigurado pelo hipócrita serial. Ela não se abala diante dos ataques que desmascaram o seu comportamento, apenas nega e apela para o conceito de suposição, como se tomasse água de coco na praia. O seu maior truque é redobrar a mentira para mitigar o valor da verdade. A sua intenção é embriagar o interlocutor adestrado na resignação das frases prontas para engajá-lo na falsidade.

Quando o jantar acabou e o chá de jasmim foi servido para favorecer a digestão, eu já estava convencida de que a literatura era o meu caminho. A dualidade, sem a qual não podemos reconhecer e conter a nossa hipocrisia, era um desafio. Enfrentar cada nova leitura era uma oportunidade para medir os meus passos, para me ver nas personagens e para me desmarcar daquilo que por princípio eu rejeitava. Fui adquirindo experiência na arte de perceber as entrelinhas. Algumas vezes foi divertido, outras causou uma tristeza profunda. Mais do que tudo, adquiri anticorpos para enfrentar mentirosos compulsivos.

Certas coisas a gente pergunta quando não aguenta mais. A literatura é ótima, etcétera e tal: a propósito, para que serviu a Lava Jato?

 

Sobre o autor

Gislaine Marins

Doutora em Letras, tradutora, professora e mãe. Autora de verbetes para o Pequeno Dicionário de Literatura do Rio Grande do Sul (Ed. Novo Século) e para o Dicionário de Figuras e Mitos Literários das Américas (Editora da Universidade/Tomo Editorial). É autora do blog Palavras Debulhadas, dedicado à divulgação da língua portuguesa.

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