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Estranhando a vida

Gislaine Marins

O nosso tempo tem oferecido uma inédita oportunidade de estranhar as pessoas. A gente achava óbvio gostar dos amigos, tolerar as diferenças, relevar defeitos. Nada disso parecia estranho. O estranhamento, para mim, era sobretudo um conceito literário. Permitia que eu compreendesse os mecanismos que criam reviravoltas nas narrativas ou que surpreendem o leitor, pois a literatura tem a vocação para mostrar fatos, personagens e objetos, rompendo expectativas e previsões. Em outras palavras, na literatura nada é trivial.

Contudo, a realidade é que na vida as obviedades costumam ser ilusões nas quais tentamos acreditar. Daí nascem as nossas decepções, as surpresas, os escândalos. O estupor revela o nosso despreparo para fazer previsões verossímeis sobre aquilo que pode dar errado. E muita coisa não dá certo. Em tempos de crise, quase todas as nossas expectativas são desmentidas e somos chamados a superar rapidamente o sentimento de desilusão para reconstruir laços e oportunidades.

Precisamos estranhar a vida para não aceitarmos a morte como uma fatalidade. Sim, é necessário achar estranho que as pessoas rejeitem a ciência, o bom senso, os fatos. É urgente achar estranho que elas se acostumem a inverdades, a teses complotistas, ao ódio pelos dados que a realidade oferece.

É necessário ter coragem para, estranhando esses comportamentos nefastos, afastar-se de quem os pratica e promove. Não prego o ódio, o banimento, a violência contra quem pensa diferente. Defendo apenas a coragem de afirmar que não podemos nos render à cultura da morte em nome de boas maneiras de ocasião. É preciso mostrar que ficamos escandalizados diante da indiferença alheia: se a convivência é feita de consensos, busquemos os acordos justos. A mediocridade e o nosso silêncio compassivo não nos tornam empáticos, mas cúmplices. Afinal, uma praga da nossa cultura e do nosso tempo é a complacência em relação à violência. Não há pior bondosismo que aquele que perdoa os erros e não ajuda quem se equivoca a corrigir-se.

O nosso exemplo, o nosso estranhamento e a nossa surpresa muda as pessoas mais do que milhares de conselhos não ouvidos. Lembrei do método da diretora de creche em que meu filho estudou. Ao menor sinal de alteração da voz de alguma professora, ela corria e perguntava com teatral espanto: “o que aconteceu de tão grave para a senhora levantar a voz?” Foi assim, colocando as professoras diante dos seus próprios gestos que ela foi “educando” um corpo docente que se tornou excelente, ao compreender que uma criança aprende a moderar a voz com pessoas que moderam a voz, que aprendem a ser gentis com pessoas que são gentis com elas. É esse o sentido do estranhamento que quero demonstrar às pessoas que estão ao meu redor: sem mediocridade, sem complecência, com empatia e confiança de que todos nós podemos melhorar uns com os outros, no diálogo, na relação e no respeito recíproco. Já escrevi isso talvez mais de uma vez, mas repito porque ainda me espanto: não acho normal as pessoas serem criticadas por ficarem chocadas com a violência alheia. A violência, verbal ou física, não é um direito. É uma vergonha. Avisemos quem está ao nosso redor de que isso é feio, estraga amizades e diminui a nossa humanidade.

Sobre o autor

Gislaine Marins

Doutora em Letras, tradutora, professora e mãe. Autora de verbetes para o Pequeno Dicionário de Literatura do Rio Grande do Sul (Ed. Novo Século) e para o Dicionário de Figuras e Mitos Literários das Américas (Editora da Universidade/Tomo Editorial). É autora do blog Palavras Debulhadas, dedicado à divulgação da língua portuguesa.

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