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A separação que faz bem

Miguel Debiasi

 

A sociedade moderna refutou a unidade entre Estado e Igreja Católica Apostólica Romana. Por longos séculos as relações entre Estado e Igreja foram de unidade. Com a separação Estado-Igreja iniciou-se a era da laicidade e isto é algo que precisa ser melhor compreendido. A laicidade nunca foi problema para Jesus, sua prática ilumina a todos os tempos.

A Igreja Católica Apostólica Romana, durante os 10 séculos da Idade Média (476 a 1453), como instituição religiosa, juntamente com o cristianismo, cresceu e expandiu-se de forma colossal. Surgida no primeiro século do cristianismo, a Igreja Católica conquistava cada vez mais adeptos e levou a ser aceita pelo Império Romano, seu maior inimigo que perseguiu os cristãos por mais de 300 anos. Antes da queda, o Império Romano tornou o cristianismo a religião oficial dos romanos, proibindo outras crenças e rituais serem praticados. A partir do século IV, com o Imperador Constantino, definiu-se os ritos cristãos, os critérios de escolhas dos patriarcas espelhados nas principais cidades do império Romano e que o bispo de Roma seria o mais importante deles, chamado de Papa, o vigário de Deus na Terra, pai de todos os cristãos.

Nos séculos seguintes, a Igreja Católica continuou ganhando força, foi privilegiada por concessões, mesmo com a desagregação política da Idade Média, ela obteve espaço para expandir a fé cristã e a mensagem do Evangelho. Mesmo num ascendente processo de crescimento sente suas fragilidades internas, como no século XI as grandes discordâncias entre o clero, um dos motivos que levou ao Cisma do Oriente em 1054, ou a separação entre a Igreja Católica Romana e a Igreja Católica do Oriente.

Os poderosos descobriram há séculos que um dos meios mais eficiente de manter a dominação sobre o povo é fazer crer que o poder político é fruto de uma decisão divina. No Antigo Egito, os Faraós eram aceitos como deuses. As decisões dos Faraós não podiam ser desobedecidas por se tratar de um deus. Na Roma Antiga, onde o poder político e civil foi modelo para o restante do mundo, uniu as práticas religiosas com o Estado, em vista de facilitar o controle das forças e isso mostrou-se conveniente para elite romana que perdurou por toda a Idade Média. Séculos depois a Revolução Francesa (1789-1799) opou-se a esse modelo político absolutista. Previu que para libertar o povo, precisava libertar o Estado. O Estado moderno torna-se independente e não mais falará sob a tutela de um Deus todo-poderoso, mas dos cidadãos livres.

O mundo atual está propenso para os Estados totalitários e com viés religioso se fortalecendo pelos continentes. Religião e política sempre se cruzaram, ora contrários e ora subservientes. A concepção teocrática cristã que perpassou toda Idade Média, período que se chamou de “cristandade”, a Igreja Romana estabeleceu relações com os mais diversos Estados e organismos políticos ideológicos. No Estado teocrático, o clero católico desempenhou funções laicas no campo político, na educação, no comércio, nas comunicações, na instrução religiosa, moral e social.

Em nome da madre igreja implantou-se o projeto teocrático no Brasil. Desde os primórdios da colonização, o Brasil foi governado pelo sistema de Regalismo e Padroado, uma espécie de teocracia e a Igreja Católica gozava dos benefícios como religião do Estado. Nesse sistema a religião fundia-se com o poder político, garantia sua legitimidade e seu status hegemônico como religião do Estado. Sob influência política do positivismo e do liberalismo acontece a separação Estado-Igreja e a primeira Constituição da República de 1891, estabeleceu a independência da administração pública em relação a qualquer instituição religiosa ou credo.

A separação não significa o fim da importância da Igreja, ao contrário, é uma forma de garantir a liberdade de crença e de prática religiosa. Com o Estado laico foram garantidas as condições de existências de todas as religiões, como as minoritárias. É papel do Estado laico garantir que as religiões existam e evitar que uma Igreja se apodere de privilégios. Numa sociedade laica, cabe a Igreja e Estado preservar as regras da laicidade que barra qualquer avanço de privilégios que estará limitando a liberdade de escolha, de credo e constrangendo outras religiões e os ateus.

Num cenário de crescimento do fundamentalismo religioso e de igrejas com pretensões de domínio do Estado é preciso voltar-se para Jesus de Nazaré. O conflito de Jesus com os fariseus, escribas e sumo sacerdotes não era uma questão do tipo pessoal (Marcos 2 e 3). Tratava-se de uma postura contrária à cultura dos fariseus, escribas, sumo sacerdotes que eram os nobres que governavam o Templo e a cidade Jerusalém dominando o povo. Para Jesus algo mais grave que a dominação política, econômica, religiosa praticada por um Estado, é o poder de oprimir as consciências e manipular a fé.

Os textos bíblicos narram que Jesus emancipou-se do sistema religioso-político. Ao sair da cidade de Nazaré Jesus emancipou-se da família que era sagrada tanto para os judeus como para as culturas tradicionais. Emancipou-se da comunidade local e das autoridades ao não reconhecer a autoridade dos anciãos. Emancipou-se das tradições e dos costumes ao deixar de fazer o que todos faziam e desequilibrou todo o sistema religioso-político. As suas desobediências às leis abalaram todas as estruturas de submissão do povo. Ele emancipou-se de tudo que oprimia as consciências e deixou claro que o projeto de Deus não se realiza com poder religioso-político do Estado.

A Igreja precisa emancipar-se das relações de submissão e de dependência. Quando se entrega um bem patrimonial da Igreja que demorou anos para ser construído mediante grande esforços dos fiéis para algum órgão estatal administrar, incorpora-se a comunidade cristã ao poder vigente e promove-se formas de oprimir as consciências. A pressão por tombamentos de templos da Igreja Católica e prédios de Instituições Religiosas Filantrópicas mostra que um Estado laico ainda não foi constituído e esclarecido. A ideia de patrimonialismo tem gerado uma confusão entre o público e privado. Um bem considerado patrimônio da comunidade local não impede que seja cuidado e preservado pelos seus proprietários, os construtores de origem.

Entre os muitos sentidos da laicidade, um compreende que cabe ao Estado administrar o que é de esfera e de natureza pública e as instituições privadas e filantrópicas como a Igreja zelar e preservar seu bem-patrimônio cultural, histórico. A separação da Igreja do Estado faz bem, o Evangelho pode ser proclamado com liberdade e profetismo, impedindo que consciências e a fé das pessoas sejam oprimidas. Como dizia o político, jurista, escritor Rui Barbosa “de todas as liberdades sociais, nenhuma é tão congenial ao homem, e tão nobre, e tão frutificativa, e tão civilizadora, e tão pacífica, e tão filha do Evangelho, como a liberdade religiosa”.

Sobre o autor

Miguel Debiasi

Frade da Província dos Capuchinhos do Rio Grande do Sul. Mestre em Filosofia (Universidade do Vale dos Sinos – São Leopoldo/RS). Mestre em Teologia (Pontifícia Universidade Católica do RS - PUC/RS). Doutor em Teologia (Faculdades EST – São Leopoldo/RS).

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