Ana Furlan: a banca como espaço para a criação dos filhos
Baixar ÁudioEste foi o último de quatro episódios da série “Jornais, revistas e muitos mais: as vidas por trás das bancas de Caxias”, que contou a trajetória de Ivanda Francescatto, Roque Simas, Rogério de Mello e Ana Furlan
O ano era 1968. Em Caxias do Sul, o antigo Clube de Dirigentes Lojistas realizava eventos para destacar o setor, o S.E.R Caxias ainda se chamava Flamengo e os jornais locais anunciavam os impactos do Ato Institucional nº 5 (AI-5), imposto pelo regime militar. Vivendo nesse contexto, estava Ana Maria Brustolin Furlan. Aos 17 anos, tinha um estabelecimento perto do Cine Ópera, onde montou um lugar para a venda de revistas junto com seu marido, Ivo Furlan.
O empreendimento era próspero. Só não podia contar com o adoecimento de seu sogro, que era dono de uma banca localizada no centro da cidade, conhecida como Guarany. Ele não podia mais tocar o negócio sozinho e precisava de um local com um banheiro para suas necessidades. Numa conversa, Ana e seu marido tiveram a ideia de fazer uma troca. Os dois passariam a trabalhar no espaço de jornais e revistas e o sogro se mudaria para a banca improvisada por ela, pois havia o que precisava. Agora, aos 69 anos, Ana relembra o início de sua jornada como proprietária de um lugar criado para a cultura.
“Olha, faz muitos anos. Nós estávamos namorando, eu e meu esposo, e tinha o pai dele que possuía uma banca de revista no centro, era chamada de Guarany. Acho que faz mais de 80 anos. Quando casei, colocamos uma banca de revistas perto do Ópera, mas meu sogro começou a ficar doente e pediu, já que o nosso espaço era uma sala e tinha banheiro, para gente fazer uma troca. Ele tinha uma certa idade e não podia ficar mais no centro. Aí mudamos, viemos para essa do centro e ele foi para a nossa.”
Em 1970, o casal adquiriu a banca, que ficava em frente ao Hotel Menegotto e o Cinema Guarany. Um tempo depois o empreendimento foi parar na Praça Dante Alighieri. O espaço permitiu a criação de dois dos três filhos: Ederson, o do meio, e Viviana, a mais nova. Isis era a mais velha e ficava sob os cuidados da avó. Infelizmente, ela faleceu aos cinco anos de idade. Como tinham que cuidar do empreendimento, eles deixavam seus pequenos com um amigo chamado Moisés, que morava atrás do negócio. A ajuda durou até a morte de Ivo Furlan.
Ana precisou cuidar sozinha dos filhos. Para não ficar longe deles, levava os dois para o trabalho. Ela improvisava um berço embaixo das prateleiras com uma esponja tirada de um colchonete e acomodava os filhos. Quando os clientes entravam e viam a situação, brincavam com Ana. Atualmente, Ederson está com 36 anos e Viviana com 34.
“Eu fui criando eles debaixo das prateleiras das bancas. Eu colocava um pedaço de esponja e eles ficavam ali. Quando eram bem bebês, e meu esposo era vivo, eles ficavam no Moisés, atrás das nossas costas. Depois, eu tive que levar meus pequenos juntos, fui vivendo a vida assim, sustentando eles e vendo crescerem. Vinha clientes e davam conselhos, uns chamavam a atenção deles: “deixa a mãe trabalhar”.
Depois de perder a banca
Essa foi a trajetória de Ana Brustolin Furlan, que há 52 anos é dona da banca na Praça Dante Alighieri. Sua história de luta parecia que iria acabar. Desde o início, ser mãe não foi fácil. Uma vida digna de superação. Mas mudanças viriam em 2019. Ela viu o espaço que serviu para a criação dos filhos se tornar um ponto de venda de mercadorias agroindustriais. O dia 24 de julho foi uma data para sair da memória, marcou o que Ana chama de desespero.
“Desesperei. Tinha minhas fotos e revistas na banca. Olha, é um sufoco que nem dá para pensar mais, já estou em depressão. Não está fácil.”
O cotidiano dela mudou após sair da banca. Ela teve que levar as prateleiras e as revistas para sua casa, no bairro Rio Branco. Não podia devolver os materiais para a Prefeitura. Pela falta de espaço, algumas partes ficaram espalhadas na área de serviço e na garagem.
Assim como Ivanda, Simas e Rogério, Ana teve que se reinventar. Ela conta que fez alguns trabalhos como costureira, mas sentia falta da banca. O espaço dava clientes com quem podia conversar.
“Para te dizer, às vezes, faço um bico de costura, mas pouca coisa, pouca coisa mesmo, porque não dá mais para minha idade. Ali [na banca] era um serviço que trabalhava com o povo, ficava conversando e mudava de assunto. E aqui em casa nem tem como botar nada, porque moro em um beco.”
Ela relembra que, quando deixou as bancas, a maioria dos clientes começou a frequentar um espaço de vendas de revistas em um shopping da cidade. A proprietária ao ver um cliente de Ana dizia que tinha chegado um órfão dela. A lembrança fez com que agradecesse o carinho da clientela.
“Eu agradeço todos meus clientes. Muitos deles vão ali na banca do shopping e a proprietária diz: Opa, chegou um órfão da Ana!”. Depois do atendimento, ela fala “Oba, ganhei mais um órfão da Ana!”
Mais mudanças viriam para Ana Furlan. Uma mudança que teria um impacto positivo em seu dia a dia. Ao final de 2019, o projeto de lei que tornava as bancas patrimônio imaterial da cidade veio como um sopro de esperança para voltar ao negócio trabalhado com o marido e o sogro. Ela é a única proprietária que não reabriu o espaço, porém tudo o que foi conquistado ao longo de 52 anos teve influência do empreendimento herdado em 1970.
“Tudo que eu fiz e construí, junto com meus filhos, saiu tudo dessa banca, tudo desse serviço.”
Este foi o último de quatro episódios da série “Jornais, revistas e muitos mais: as vidas por trás das bancas de Caxias”, que contou a trajetória de quatro proprietários dos espaços na cidade. Ivanda Francescatto, Roque Simas, Rogério de Mello e Ana Furlan possuem um vínculo com a história de Caxias do Sul. Mais do que isso, eles guardam uma forte ligação com a cultura do município e com a vida de cada caxiense.
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