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Viver em Deus sem Deus?

Miguel Debiasi

 

“Temos que viver no mundo mesmo que não fosse dado por Deus. Deus nos faz saber que devemos viver como pessoas que dão conta da vida sem Deus”. A frase do pastor e teólogo alemão de confissão luterana, Dietrich Bonhoeffer (1906-1945) rendeu muitas reflexões e obras. O sacerdote, teólogo e filósofo jesuíta, o belga Roger Lenaers, publicou uma obra parafraseando Bonhoeffer: “Viver em Deus sem Deus”? A obra é imprescindível para contextualizarmos em nosso tempo.

O pastor e teólogo luterano Dietrich Bonhoeffer foi preso em março de 1943 e enforcado pelos nazistas na prisão de Flossernburg, pouco tempo antes de o próprio Hitler cometer suicídio. Bonhoeffer é um mártir de nosso tempo. Em suas obras teológicas argumenta sobre a Igreja como o Corpo de Cristo. Apresenta a Igreja como a comunidade de seguidores de Cristo encarregada por Deus para testemunhar a solidariedade com o mundo, através da opção pelos fracos e perseguidos. Acreditava que ser cristão consistia em ser justo com as pessoas, porque a encarnação e a cruz de Cristo estabelecem um amor abrangente pelo mundo. Na carta a Theodor Litt em 1939, escreve: “Só porque Deus se tornou uma pessoa pobre, miserável, desconhecida, malsucedida, e porque a partir de agora Deus quer ser encontrado sozinho nesta pobreza, na cruz, é por isso que não podemos nos livrar das pessoas e do mundo, é por isso que amamos os irmãos”.

Bonhoeffer escreve que a adesão a Cristo deve tomar a forma do discípulo. O discípulo estabelece uma relação de amor com Cristo e torna-se o entusiasta para colocá-la em prática, nisto consiste o desenvolvimento do cristianismo. Quando o cristianismo deixou de ser discipulado, os cristãos afogam o Evangelho em uma exaltação emocional que não faz exigências custosas e que faz distinção entre a existência natural e a existência cristã. Nessa experiência cristã não se vê a cruz de Cristo como uma calamidade do dia a dia, como uma das provas e tribulações da vida. Quanto mais nos revelarmos como discípulos de Cristo que se fez carne e entrou no mundo, mais reivindicamos que só existe esse mundo para viver a mensagem do Evangelho.

Para Bonhoeffer a fé cristã não pode esquivar-se de decisões em situações pessoais e históricas concretas, desse modo pode haver a plenitude de vida como Jesus prometeu e testemunha na própria cruz. O cristão como discípulo de Jesus é o primeiro responsável no mundo, discernindo a vontade de Deus na necessidade do próximo, a exemplo de Jesus. Inserido em qualquer realidade, o discípulo de Cristo nunca deve decidir em primeiro lugar pela sua própria pessoa, mas pelo outro, o próximo. Um discípulo de Cristo sem a exigência do próximo exalta sua própria vida, vive a fé de forma abstrata, usa da Igreja, da pregação sem a graça.

O filósofo, teólogo e sacerdote jesuíta belga Roger Lenaers parafraseando Bonhoeffer configura a fé na modernidade com uma frase: “perante e com Deus vivemos sem Deus”. A afirmação merece dois esclarecimentos. Em “viver sem Deus” indica que a fé cristã acabou sendo revestida de uma pura transcendência e abstrata que aponta para o horizonte futuro à espera de sua realização. É uma fé cristã que não está conectada e impregnada da realidade humana. A expressão “perante e com Deus” pode fundir-se e suscitar a impressão de um “outro”, do próximo, a partir do qual se observa e se participa. Em suma, na modernidade a fé pode configurar-se uma experiência sem um agir ético e sem envolver-se e abrigar uma vida em Deus.

Enquanto para Roger “viver em Deus” é uma experiência cristã ética profunda que jamais se esgota e que vive um encontro com o Amor Primordial/Deus, vivenciado numa união íntima que pede envolvimento e responsabilidade no mundo. “Viver em Deus” dá asa a responsabilidade de inculturar o Evangelho na sociedade moderna. O “viver em Deus sem Deus” pergunta-se pela vida cristã que parece essencialmente ateia, aquela fé que não se percebe nenhum vestígio de testemunho de ser discípulo de Cristo. O ateísmo cristão vem lograr uma imagem de Deus único nas alturas, situado fora do mundo onde inexiste o Evangelho e sua justiça. Acima do mundo está o fenômeno do relâmpago, trovão, tempestade, pertence ao outro mundo, situado acima do nosso. Tudo o que dizemos acerca do “acima”, céu, esse mundo perfeito que rege, instrui, recompensa ou pune, vem de baixo ou está relacionado com aquilo que a vida cristã faz ou deixa de fazer os mortais aqui em baixo.

Na visão de Bonhoeffer e de Roger a fé cristã não é de maneira alguma estranha ou ingênua a sociedade moderna. Para deixar de “viver em Deus sem Deus” exige do discípulo de Cristo o olhar para o “vale de lágrimas” em que vive o próximo que são milhões de seres humanos. Além das orações, súplicas e sacrifícios aos poderes superiores que intercedam pelos sofredores, é preciso dos seguidores de Cristo a consciência ética, a solidariedade, a visão humanística e profecia evangélica para diminuir drasticamente as injustiças sobre o próximo. “Viver em Deus” é vê-lo em si mesmo no outro, fundamento que determina o modo de ser e fazer-se cristão. Eis o desafio dos cristãos de nosso tempo diante de milhões de humanos abandonados no “vale de lágrimas”.     

Sobre o autor

Miguel Debiasi

Frade da Província dos Capuchinhos do Rio Grande do Sul. Mestre em Filosofia (Universidade do Vale dos Sinos – São Leopoldo/RS). Mestre em Teologia (Pontifícia Universidade Católica do RS - PUC/RS). Doutor em Teologia (Faculdades EST – São Leopoldo/RS).

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