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Somos todas Lucrécia

Gislaine Marins

“Lucrécia, olha a vara!” – escreve Machado de Assis no célebre conto “O caso da vara”. Para quem não lembra, conta a história de Damião, um rapaz que foge do seminário em um não precisado dia do mês de agosto e pede socorro a Sinhá Rita. Lucrécia é a escrava de Sinhá Rita, onze anos, acostumada ao castigo frequente, com uma cicatriz na testa e uma queimadura na mão esquerda. Quando Damião recorre a Sinhá Rita e pede que ela interceda para que ele não permaneça no seminário, a pequena Lucrécia larga o que está fazendo para ouvir a conversa. Mas a Sinhá Rita não é Jesus Cristo, que explica a Marta, irmã de Maria Madalena, a importância de ouvir porque isso jamais lhe será tirado. Sinhá Rita, ao contrário, ameaça Lucrécia, e esta já se prepara de forma submissa para receber o castigo, que não acontece na primeira parte da narrativa, pois se trata apenas de um primeiro aviso. Como veremos ao final do conto, a senhora perderá a paciência com a escrava e dará a Damião a incumbência de trazer a vara para as chibatadas. E Damião, pensando nas suas vantagens pessoais, depois de alguma indecisão, passa a vara, mesmo consciente de que Lucrécia está sofrendo uma injustiça.

Um momento interessante do conto acontece quando Sinhá Rita intercede a favor de Damião. Com o rapaz, ao contrário, a senhora revela-se condescendente e defende que ele não receba nenhum castigo por ter fugido do seminário. O seu pensamento se traduz em uma frase: “antes um padre de menos que um padre ruim”.

A narrativa prossegue, com as pressões recíprocas, entre o pai furioso, os intermediários da negociação e  Sinhá Rita, atuando como advogada de defesa do jovem. Para preencher o tempo entre uma pressão e outra, entram em cena algumas moças, e Sinhá Rita pede que Damião as entretenha com tiradas graciosas, já ouvidas antes por Lucrécia, que agora evita qualquer reação e procura manter a concentração no trabalho confiado. A menina, ao final do dia, não consegue cumprir as tarefas recebidas, provocando a fúria de sua proprietária: é neste ponto que Sinha Rita pede a vara a Damião, a fim de castigar a escrava, e ele não é capaz de dizer “não”.

Lucrécia são tantas: mulheres feridas, psicologica ou fisicamente, cujas feridas fingimos não ver; mulheres chantageadas pela ameça da punição, da perda do emprego, da estabilidade familiar; pressionadas a calar as suas opiniões diante dos mais fortes, humilhadas pela sua condição profissional inferior, numa sociedade que subestima o talento das mulheres; permutadas diante da vantagem de outro, mais poderoso ou masculino, em uma sociedade que organiza patriarcalmente o poder. Damião são todos os que pensam no interesse pessoal acima de qualquer escrúpulo; todos os que comodamente sabem da posição de vantagem dos homens; todos os que usam justificativas para aplacar a própria indiferença. Damião é o cidadão egoísta da nossa sociedade e, evidentemente, é muito mais, porque a literatura nunca se limita a uma única leitura. Damião é mais, mas nunca sará um personagem dotado de qualidades admiráveis. Encarna, ao contrário, a hipocrisia, que está na base de todas as camadas de injustiças estratificadas e ocultadas pela benevolência seletiva de Sinhá Rita.

Sinhá Rita, por fim, está longe de ser exemplo de caridade cristã, embora se apresente como defensora de pobres jovens sem vocação. Lamento constatar que a nossa sociedade espelha muito mais a senhora de escravos, com a sua dupla moral, com a leitura seletiva dos textos evangélicos, com a falta de piedade segundo o nível social. Além de tudo, Sinhá Rita é surda: incapaz de ouvir, de desenvolver o diálogo. Ela comanda: o séquito obedece, Damião tira proveito.

“O caso da vara” é um retrato do Brasil atual: repleto de violências seletivas, de surdez, de incapacidade de dialogar, de arrogância dos poderosos, de tratamento cruel reservado aos subalternos, de ambiguidade para obter posições vantajosas, de injustiças. Há uma Lucrécia que sofre em cada esquina, uma Sinhá Moça prepotente pronta para humilhar subordinados em qualquer círculo social, há sempre um Damião disposto a abrir mão dos seus princípios para obter uma vantagem, ainda que efêmera.

Hoje mesmo conversava com uma amiga e dizia aquela máxima que todo mundo conhece: a gente pode aprender pela teoria, pelos exemplos e pelos bons conselhos. Ou pode aprender levando relho. Desta vez, estamos prestes a ver um sofrimento indescritível, que recairá sobre cada pobre Lucrécia injustiçada, sobre cada Damião iludido com seus possíveis proveitos (que o conto, sabiamente, não confirma, deixando ao leitor a tarefa de refletir sobre o conceito de prognóstico). O programa de violência policial, de rigor econômico e de individualismo social que está sendo pregado por certas candidaturas não tratá nada de bom para o conjunto da nossa sociedade, não reforçará o nosso sentido de pertença a um povo, aos nossos povos, à nossa pluralidade cultural. Tem gente que, sendo Lucrécia, não poderá escapar da vara. E há quem, sendo um iludido Damião, compactua e entrega a vara que cairá sobre as suas próprias costas. É triste. Mas este é um país que lê pouco. E que aprende pouco com as lições que lhes são dadas. Estamos cheios de Martas que se queixam aos ouvidos das Sinhás e poucas Marias que tiram proveito do que ouvem. Podemos virar Lucrécia. Ou surpreender o autor, mudar o final da história. Cabe a nós escolher o número certo.

Sobre o autor

Gislaine Marins

Doutora em Letras, tradutora, professora e mãe. Autora de verbetes para o Pequeno Dicionário de Literatura do Rio Grande do Sul (Ed. Novo Século) e para o Dicionário de Figuras e Mitos Literários das Américas (Editora da Universidade/Tomo Editorial). É autora do blog Palavras Debulhadas, dedicado à divulgação da língua portuguesa.

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