Pata pata
Deveria existir um hino oficial para celebrar a memória dos pequenos mártires, mortos por alimentarem o sonho de terem acesso aos direitos fundamentais de uma vida digna e de educação.
Deveria existir uma canção para recordar Zohra, espancada até a morte aos oito anos de idade por ter libertado dois papagaios da gaiola no Paquistão. Zohra tinha sido autorizada por seus pais a trabalhar na casa de uma família abastada em troca da possibilidade de estudar. Morreu como uma pequena serva, privada de todos os direitos da infância e de todos os direitos do homem. Todas as aves da floresta deveriam entoar um canto em seu nome. Todos os homens deviam ter vergonha de permitir que a nossa espécie admita a servidão de crianças em troca da alfabetização.
Deveria existir uma cantiga para lembrar Iqbal Masih, vendido como escravo para pagar uma dívida de família. Trabalhando o dia inteiro acorrentado e subnutrido, Iqbal conseguiu escapar do cativeiro e denunciar os seus algozes. Entretanto, estando sob a tutela do seu explorador, ao ser capturado pela polícia paquistanesa, não teve seus direitos fundamentais respeitados, mas foi devolvido a seu patrão. Conseguindo fugir pela segunda vez, denunciou ao mundo o estado de escravidão a que muitas crianças são submetidas. Foi assassinado aos doze anos, ao retornar para o seu país.
Deveria existir uma música que embalasse a alma de Marcos Vinícius, de quatorze anos, atingido por tiros durante uma operação policial no Rio de Janeiro. Antes de morrer, o menino perguntou à mãe: “Eles não viram que eu estava de uniforme?”. Marcos Vinícius foi baleado pelas costas, sem possibilidade de defesa, sem nenhum gesto de resistência, sem abordagem que justificasse uma resposta armada.
Segundo dados do UNICEF, todos os dias 32 crianças são assassinadas no Brasil. O número supera a perda de vidas na infância em conflitos como o da Síria ou do Iraque. Para essas vítimas, não há monumentos, hinos, homenagens. Muitos processos acabam com a absolvição dos culpados, que utilizam o princípio da resistência, do desacato ou da legítima defesa como linhas defensivas. Trata-se de uma tragédia a conta-gotas, como a morte de Zohra e de Iqbal Masih, que entram na estatística das fatalidades individuais. Apesar da comoção coletiva e da visibilidade internacional dos casos, são destinados ao oblívio das consciências superficiais.
Mas existe “Pata pata”, a canção inesquecível de Miriam Makeba. Composta em língua xhosa, do grande ramo línguístico das línguas bantas, a canção tornou-se planetária numa época em que não existia redes sociais e google translator para oferecer uma versão aproximativa do seu sentido. Conquistou o público pela musicalidade, mas continha uma mensagem tão poderosa que a cantora acabou perdendo a sua cidadania natal por suas posições em defesa do seu povo, oprimido pelo apartheid.
Dez anos depois de composta, a língua usada em “Pata pata” seria heroicamente defendida pelos estudantes do subúrbio de Soweto, na África do Sul, gerando uma verdadeira matança de inocentes. Hoje, a data é celebrada em todo o continente africano, que celebra o Dia da Criança Africana em memória dos jovens que revindicavam o direito de estudarem em sua língua materna.
Na verdade, seria preciso bem mais do que uma canção que ninasse o sono eterno dos inocentes. Seria preciso uma consciência planetária, uma ética inegociável, um compromisso incondicional, que impedisse a morte de Zohra, o assassinato de Iqbal, o homicídio da Marcos Vinícius e de milhares de outras crianças que perdem a vida, os sonhos, o futuro, e expõem a nossa face a uma vergonha histórica. É triste o mundo em que a ganância e a violência continuam sendo as moedas que extirpam possibilidades nascentes, que abortam o devir, que condenam os homens à pecha da barbárie: um mundo no qual a música é utopia e os poetas são anjos que ninam a memória de sonhos desfeitos.
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