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Os abraços no cavalo caramelo

Miguel Debiasi

A história cria seus personagens. Os nossos mestres do ensino médio nos ensinavam sobre a História Geral da Civilização, contando a vida dos grandes personagens: imperadores, reis, rainhas, princesas, marechais, duquesas e outros. Sedentos de conhecimentos, aceitávamos as narrativas como as mais sagradas bravuras humanas, nas quais, buscávamos inspiração para as nossas vidas. Agora, com os pés no chão, com o olhar voltado para a realidade, observamos que os personagens da História Geral não são apenas seres humanos, a natureza apresenta outros, como o cavalo caramelo.

O filósofo francês Paul Ricoeur (1913-2005) com seu clássico ensaio Tempo e Narrativa (1983-1985) ajuda-nos a examinar as narrativas históricas, precisamente para entendermos o “tempo” e a “narração”, ou a “experiência” e a “consciência”. O filósofo insiste na ideia de que o discurso do historiador pertence antes de tudo a uma ordem narrativa, ou seja, tem uma intencionalidade, que não é neutra. Entre o tempo e a narrativa tem uma relação, ambos se reforçam, criam-se personagens dentro de seu tempo.

Marco Túlio Cícero, senador, filósofo e retórico romano, que viveu no século I antes de Cristo, concluiu: “A História é a mestra da vida”. Esta célebre frase transmite a ideia de que história ou passado tem poder de ensinar as pessoas para agirem da forma mais prudente, evitando experiências fracassadas. Na compreensão da História, a humanidade pode fazer hoje um caminho ético, ecológico, humano, tecnológico ou qualquer outro melhor do que ocorreu no passado.

Na história do filósofo alemão Friedrich Nietzsche (1844-1900), autor de sábios escritos filosóficos, há um episódio por demais significativo que serviu como inspiração para o filme O Cavalo de Turim. O episódio ocorreu em três de janeiro de 1889, em Turim, na praça Carlo Alberto, quando o filósofo observava um cavalo sendo duramente chicoteado pelo cocheiro, porque o animal não andava por estar completamente exausto. Mesmo assim, o cocheiro continuava batendo no cavalo para que caminhasse, ainda que exaurido, sem forças. Nietzsche em choro e profundamente comovido de compaixão abraça-se ao pescoço do cavalo, permanecendo agarrado ao animal, até seu desmaio. Segundo testemunhas, Nietzsche murmurou algumas palavras, no ouvido do cavalo, que ninguém escutou. Mas contam que as últimas palavras do filósofo foram: “Mãe, eu sou um idiota”. Após o fato, Nietzsche ficou inconsciente e sua mente entrou em colapso.

Existem muitas versões sobre o acontecido em Turim. Mas a única coisa certa é que o filósofo jamais voltou a ser o mesmo, permanecendo por 10 anos mudo até a sua morte. Com isso, ele não pôde explicar o seu gesto e a sua atitude de abraçar o cavalo em calvário. Nietzsche até tentou escrever algumas cartas para dois amigos com frases completamente incoerentes. Assim, um dos filósofos mais lúcido e inteligente do século XIX acabou dependendo em tudo da caridade de sua mãe e de sua irmã.

O episódio rendeu muitos comentários e produções. Aos críticos o episódio do abraço ao cavalo sendo chicoteado é muito significativo, possibilita entendimento da situação de Nietzsche. Existe um antes e um depois do cavalo de Turim. O episódio demonstra que Nietzsche não estava em plena posse mental, se aproximaria da loucura e da dependência da qual não havia regresso. Com o abraço no cavalo, Nietzsche estaria abrindo as portas de seu abismo, do seu sofrimento e transtorno mental.

Por outro lado, no episódio há uma lição para a humanidade. Ao abraçar aquele cavalo em dor, Nietzsche não estaria abraçando somente o animal em seu sentido literal. O filósofo pode ter vislumbrado no cavalo em dor um símbolo do sofrimento humano, buscando compreender o verdadeiro significado pathos, sentimento de dó e de compaixão. No gesto do filósofo, há empatia pelo outro e pela sua miséria que representa todos os seres humanos. Assim, Nietzsche não abraçava somente o cavalo de Turim, mas todas as amarras, os sofrimentos, os calvários da humanidade.

Nas provocações dos filósofos Paul Ricoeur do tempo, que têm suas narrativas, de Marco Túlio Cícero que a história mestra da vida e do abraço no cavalo de Nietzsche, que possamos desenvolver consciência crítica sobre o nosso período histórico. Nos fatos preexistes há uma narrativa bastante própria, como no lamentável episódio das enchentes de setembro de 2023 e em abril e maio de 2024, que atormentaram a vida de milhões de gaúchos. Essa realidade climática, caótica revela a desconfiguração do ser humano com a natureza, por outro lado, deixa vir à tona a desorganização no interior da sociedade, do governo estadual e das cidades.

Nas enchentes, há uma clara narrativa, no século XXI um projeto de sociedade, de civilização, de desenvolvimento humano e de crescimento econômico, tecnológico e outros precisam deixar de contribuir com o desequilíbrio ecológico e do ecossistema. Também não pode perpetuar a decadência da consciência ecológica, social e aceitar os fenômenos climáticos como meros fatalismos, que se repetem a cada cem anos. As águas das enchentes são uma voz que ecoa sobre os mais diversos descuidos com a Casa Comum, a natureza, o meio ambiente. São sinais que o ser humano se transformou no primeiro inimigo da Casa Comum.

As enchentes é o grito da mãe natureza que reage aos maus-tratos que vem sofrendo há décadas. A reação da natureza se manifesta cada vez mais forte. Todos os sinais são alertas, como do cavalo caramelo sobre um telhado com duas patas de um lado e outras duas no outro da cumieira da casa completamente tomada pelas águas turvas e barrentas. O animal indefeso, sabiamente postado com suas patas e imóvel resistiu por vários dias, resgatado não lhe faltaram abraços da população, comovida pela cena de resiliência do cavalo.

A história haverá de escrever muito sobre cavalo caramelo, porque se transformou em uma imagem símbolo da destruição da natureza, do desequilíbrio ecológico. Canções e textos críticos serão escritos sobre o desequilíbrio ecológico do planeta. Cientes de que as inundações no Estado do Rio Grande do Sul não são manifestações isoladas do ecossistema ou fatalismos no século XXI. São gritos do ecossistema para uma nova consciência ecológica, novos métodos de produção, novas técnicas de produção agrícola, novas relações com o meio ambiente.

O cavalo é a ponta do iceberg, o paradigma da complexa situação, as sirenes disparadas da Casa Comum. Os abraços no cavalo caramelo não são somente de dó, mas também representam as loucuras humanas praticadas contra o ecossistema. Infelizmente, as loucuras têm um alto preço a ser pago.

Sobre o autor

Miguel Debiasi

Frade da Província dos Capuchinhos do Rio Grande do Sul. Mestre em Filosofia (Universidade do Vale dos Sinos – São Leopoldo/RS). Mestre em Teologia (Pontifícia Universidade Católica do RS - PUC/RS). Doutor em Teologia (Faculdades EST – São Leopoldo/RS).

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