O ser humano a-religioso
A modernidade levou o homem a acreditar-se construtor de seu próprio mundo. Esse homem está convicto de sua existência dar-se no mundo histórico. O problema é que sua autossuficiência antropocêntrica não consegue libertar-se da cultura religiosa. Isto é, da presença de Deus. O homem moderno pretende ser a-religioso, algo pouco provável e viável que consiga.
O pensamento moderno fecundou a ideia de um mundo sob o domínio antropocêntrico. É com este princípio que o homem moderno conduz sua existência histórica. Postura que bem definiu o filósofo grego Protágoras (490-410 a.C.) em sua célebre frase que marcou o pensamento ocidental: “o homem é a medida de todas as coisas”. Embora tal afirmação permita diferentes interpretações, o homem moderno pretende torná-la a medida e a razão de seus dias. Ao proclamar-se a “medida de todas as coisas”, absolutamente nada está para além de sua natureza humana e histórica.
Sem dúvida alguma, esta ideia é resultado de um movimento de dessacralização do ser humano e, ao mesmo tempo, de secularização da sociedade. Daí a tentativa de proclamação do ser-no-mundo como homem profano, afirma o teólogo Urbano Zilles. Profano no sentido de laicidade, como sistema organizativo da sociedade e da convivência entre os cidadãos sem a interferência das religiões. Diz-se da sociedade que supõe a negação de Deus e do acontecimento religioso, ou do homo religiosus. Então, a concepção a-religiosa visa constituir o homem como único sujeito da história. Para tanto, precisa dessacralizar a si mesmo e ao mundo, algo impossível no dizer de Urbano Zilles.
A dessacralização da existência humana encontrou suporte no pensamento do filósofo alemão Nietzsche (1844-1900). Na obra Gaia Ciência, afirma: “Deus está morto”. Em outra obra, Assim falou Zaratustra, Nietzsche descreve a influência negativa da filosofia cristã na vida humana. Na mesma obra faz uma descrição poética e fictícia da vida moderna ao satirizar os textos do Antigo e do Novo Testamento. Os escritos do filósofo são uma crítica à moral e tradição cristã, à estrutura da sociedade e ao pensamento religioso ocidental. Na verdade, quando diz “Deus está morto”, Nietsche se refere à morte das estruturas religiosas e ao fim do pensamento cristão ocidental, e, propriamente, de Deus.
Porém, a crítica de Nietzsche contribuiu com a antropologia e teologia cristã enquanto compreensão do homem ser-no-mundo. Melhor dizendo, o homem moderno crítico da influência da filosofia cristã é incapaz de libertar-se desta cultura. Neste sentido a “morte de Deus” em Nietzsche é a negação da não compreensão da condição da natureza humana. Ou seja, a natureza humana é imperfeita e desfalece, e sua razão corrompe e é enganadora. Igualmente, o amor a si mesmo é demasiado e imperfeito. Por fim, a solidão foi para Nietzsche caminho de percepção da natureza humana imperfeita e o reconhecimento de que existe algo inalcançável ao ser humano, algo que transcende.
Assim sendo, a sociedade a-religiosa oferece conclusões da não existência de antropocentrismo sem transcendência. Portanto, é impossível uma sociedade laica libertada da influência da religião. A contribuição da filosofia cristã ocidental como ser-no-mundo está para além da materialidade e da história, aberta à transcendência e às gerações futuras. No dizer da teóloga brasileira Ivone Gebera (1944), a experiência e a compreensão da transcendência são imanentes à realidade humana e histórica. Quer dizer, o ser humano é habitat natural do divino que se expressa na experiência cotidiana de uma vida livre e libertadora. Por conseguinte, a sociedade totalmente laica e o homem a-religioso é pretensão do pensamento moderno e não a realidade.
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