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O museu dos sentimentos perdidos

Gislaine Marins

Deveria existir um museu para conservar os sentimentos antigos, assim como os sentimentos raros, que corremos o risco de perder para sempre. A dificuldade prática para a realização de tal empresa é óbvia: os sentimentos não possuem materialidade. O museu, portanto, deveria ser uma coletânea de efeitos, exibidos por meio de imagens, instrumentos, documentos, obras literárias, objetos artísticos e peças do cotidiano, que revelassem a relação existente entre os sentimentos e as coisas, entre as coisas e a vida, entre a vida e o mundo. Mesmo assim, boa parte da tarefa de reconstrução dos sentidos caberia aos espectadores, encarregados de sensibilizarem a si próprios diante dos testemunhos e de tentarem sentir ou pelo menos entender o acervo de tal extravagante museu.

Um sentimento que marcou época, por exemplo, é o amor cortês. Cultivado durante a Idade Média, era claramente um luxo reservado à aristocracia e nunca chegou a ser popularizado. Sim, temos um histórico de desigualdades que vai da exclusão econômica às marginalizações sociais, da comida aos sentimentos. Alcançamos, pelo menos como princípio, o direito à instrução universal, mas ainda não atingimos a consciência da importância da educação da nossa sensibilidade.

O amor cortês possuía meios codificados de expressão: uma verdadeira etiqueta, composta por gestos, palavras e também silêncios. Encontramos a sua representação em iluminuras, poemas e sugestões que, graças a historiadores e críticos, de vez em quando são identificados também em obras e situações surgidas após a época medieval. Muito bem, mas não é isso que nos importa. Se existisse um museu dos sentimentos esquecidos, abandonados, perdidos ou em fase de desaparecimento, a atenção do curador deveria focalizar-se na tentativa de revelar a sua potência emotiva. Portanto, para o amor cortês, deveria encontrar algo que transmitisse a sensação de vassalagem, uma submissão que não se confunde com opressão, mas é sinal de reverência, admiração e distância.

Assim, o amor cortês começa a evocar outros sentimentos, que ficaram jogados em algum canto empoeirado da história. Precisamos compreender a reverência, um termo que provém do verbo latim “vereor” e indica respeitoso temor, mas também o gesto concreto de inclinação da cabeça e do tronco em relação a alguém considerado superior. Indo aos antepassados dessa reverência medieval, retornando, portanto, à língua que deu origem ao conceito, encontramos Cícero, o grande orador romano.

São célebres os seus discursos contra Catilina, representante de velha nobreza que tinha enriquecido com a ditadura, e que fomentou cidadãos inquietos, bem como marginalizados, criminosos e facínoras contra a República. No último dos quatro discursos, Cícero afirma diante do Senado:

“[Talvez] temais (vereamini) parecer severos ao punir este enorme atentado? Não, não: o que devemos temer (verendum), ao contrário, é sermos criticados como inimigos da pátria, se o castigo não corresponder à gravidade do excesso”.

Que sentimento complexo, não é? O temor, que leva à reverência, desencadeia uma sensação relacionada à possível ruptura de uma ordem, com a percepção interior e exterior de algo a ser respeitado. A reverência contém uma dose de medo. Como transmitir isso, senão por meio de um catálogo que arquive no nosso coração as cenas imaginadas desse patrimônio cultural que os conceitos conservam? Como restituir a matéria emotiva dos testemunhos do passado? Como compreender a potência das palavras e a sua conversão em emoções e gestos que marcam a história? Como reaproveitar essa matéria para as necessidades de hoje?

E nem chegamos na admiração, outro termo relacionado ao amor cortês, e que nada tem a ver com a idolatria que às vezes nutrimos por pessoas famosas. A palavra tem a ver com a maravilha, um fenômeno extraordinário e único. A admiração é algo que sentimos ao observar com surpresa as qualidades do outro. Como explicar essa sensação para pessoas que cultivam a crítica, o ódio, o desprezo por quem não lhes serve de espelho? É impossível admirar quando dirigimos aos outros sentimentos de desconfiança. Mas também é impossível admirar, se não mantivermos a distância. A distância é o que nos permite ver as diferenças. E as diferenças é aquilo que pode surpreender e maravilhar. É o que pode gerar admiração. Se detestamos o que é diferente, como podemos nutrir no nosso coração a admiração? No máximo, podemos alimentar a idolatria.

Nada pode estar mais distante da admiração do que a idolatria, palavra composta que indica submissão a uma imagem (falsa). “Latria” é um elemento que se relaciona tanto a mercenários quanto a ladrões. É uma burla, antes de tudo, em relação às nossas próprias ilusões.

Poderíamos colocar um pouco de amor cortês em nossa vida, se tivéssemos museus, tecnologias, políticas, meios e instrutores comprometidos em recuperar o que tem sido desprezado num mundo com tanta aversão, tanta idolatria e tanta opressão. É claro que o amor cortês não resolveria todos os nossos problemas, mas enriqueceria a nossa bagagem. Poderíamos compreender, por exemplo, que nessa concepção de mundo somente quem ama possui um nobre coração.

Os que se sentem no topo da escala social precisam saber que o ápice raramente tem a ver com a nobreza como aqui conceituamos e que essa nobreza não é privilégio de uma classe social: hoje todos podemos cultivar os nossos sentimentos, um direito do qual servos, escravos e classes populares em geral foram excluídos por muito tempo (os psicólogos e psiquiatras, que cuidam da nossa mente e das nossas emoções, têm muito a dizer sobre o muito que ainda há por fazer a fim de alcançarmos uma democratização efetiva dos cuidados nessa área). Perdemos, talvez, esta noção de cortesia em nome do poder, do sucesso, da força e da arrogância. Mas com isso, perdemos algo muito mais precioso: o amor, o sentimento mais poderoso que existe para transformar as pessoas, a vida e o mundo.

 

Sobre o autor

Gislaine Marins

Doutora em Letras, tradutora, professora e mãe. Autora de verbetes para o Pequeno Dicionário de Literatura do Rio Grande do Sul (Ed. Novo Século) e para o Dicionário de Figuras e Mitos Literários das Américas (Editora da Universidade/Tomo Editorial). É autora do blog Palavras Debulhadas, dedicado à divulgação da língua portuguesa.

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